Categoria: Nilson Lattari

  • MEMÓRIAS – Nilson Lattari

    MEMÓRIAS – Nilson Lattari

    Memórias são como pequenos documentários que nossas mentes vão acumulando. Nunca é um filme completo. São pedaços de experiências, boas ou más, que tivemos durante nossa vida.

    Quando estamos na solidão, as memórias aparecem para cumprir seu papel de preencher os espaços vazios dos nossos silêncios. Memórias são como anjos que nos ajudam nos momentos mais terríveis, nos mais alegres, naqueles, simplesmente, onde queremos companhia. Memórias são brinquedos que manipulamos ao nosso prazer. Podemos modificá-las, transgredi-las, uma viagem no tempo, trazendo o passado para o presente e imaginando que futuro teríamos. As memórias são o único contato entre o prisioneiro e a liberdade, como um álbum que se abre e ativa a câmera de olhar.

    Memórias, nos tempos de hoje, são as coisas mais valiosas que temos. Memórias são a razão para continuar a existir. Eles mostram um mundo possível, permitem que possamos avançar, e criar mais memórias.

    As memórias podem ser ruins, podem nos trazer momentos desagradáveis, infortúnios, e, ao mesmo tempo, são lições para sobreviver, lições para o que não se deve fazer. Memórias, se inimigas, são colocadas de lado, em um banco de espera, mas são impossíveis de serem apagadas, porque são os traços, as pegadas que a nossa existência foi deixando pelo caminho.

    O que seria de nós, vivendo uma situação de isolamento, de distanciamento, se não fossem as memórias nos confortando, provando que ainda estamos vivos e ativos, capazes de rodar esses pequenos documentários?

    É hora de esquecer o portal de retratos, imagens paralisadas no tempo, se temos a memória girando e movimentando nossos corpos virtuais deixados no espaço temporal. Com elas podemos sentir o cheiro da pele ou o gosto do beijo, podemos guardar a voz e os gestos da pessoa amada, e da sensação gostosa da vitória alcançada. E o medo do desconhecido quando, corajosamente, conversamos com nossos fantasmas.

    Nas civilizações, e foram muitas até chegarmos à nossa, as memórias estão com as mulheres, sempre confinadas nos lares, em um isolamento passivo, enquanto os homens saíam dos lares. São as mulheres, as avós que guardam as memórias das famílias, e as levam quando vão embora, deixando-nos em um tipo de orfandade, espaço vazio para a criação de novas. Por isso, talvez, seja a memória o feminino. Respeitar as mulheres é respeitar a memória. E quando agredimos essa feminilidade é como se socássemos os

    nossos segredos e perturbações mais guardados: uma mãe, uma mulher sabe com quem lida, e, nos seus silêncios, no isolamento são as guardiães das memórias.

    Mas as nossas nos pertencem, como os segredos que guardamos. E as memórias são super-heroínas aladas que nos ajudam a superar estes momentos cruciais de nossa existência, demonstrando nossa fragilidade, ou a nossa força em resistir, sempre.

    Memórias não têm fim, até que nos tornemos as memórias de alguém, e que elas sejam boas, sempre.

     Nilson Lattari é Escritor

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  • AS MELHORES COISAS DA VIDA – Nilson Lattari

    AS MELHORES COISAS DA VIDA – Nilson Lattari

    Muito se fala sobre as coisas da vida, as melhores coisas da vida. Enumeramos várias delas e damos, no final das contas, o nome de coisa. Que coisa é essa que chamamos de as melhores da vida. Quando, simplesmente, coisas da vida não sejam coisas, produtos comuns, acontecimentos comuns?

    Banalizamos nossas situações bem vividas, ou mal vividas, como objetos comuns, quando deveríamos considerar em todos os sentidos que o que nos acontece na vida são construções bem-feitas, mesmo que elas aconteçam sob condições difíceis, ou sejam difíceis de conseguir.

    As melhores coisas da vida não são simples. Se são melhores, a própria citação se contradiz. Bons acontecimentos, situações felizes existem para serem lembradas. As piores coisas da vida fariam mais sentido. Porque acontecimentos ruins são coisas, e esquecidas para sempre.

    Se nossas lembranças nos conduzem para o passado dos acontecimentos, aquelas coisas que lá ficaram guardadas não podem ser reduzidas a agrupamentos, ou objetos entulhados em uma prateleira escura, de uma sala escura, que o nosso olhar interno vai iluminar e reaparecer para nós.

    Coisas são objetos que jogamos em qualquer canto, sem cuidado algum. As melhores coisas da vida, por serem boas, nunca devem ser ignoradas e colocadas na prateleira comum da coisificação.

    Coisificar nossas lembranças, os bons acontecimentos é banalizar nossas aventuras terrenas. Os melhores acontecimentos em nossas vidas são aqueles que nos levam para o futuro, e mesmo os piores, verdadeiras coisas a nos assombrarem, nos traz algum conhecimento para sobreviver.

    Deitar em uma cama para dormir, e chamar nossas melhores lembranças para embalar nossos sonhos mostra que aquilo tudo que nós vivemos, revivemos e recontamos sob novas perspectivas não são coisas, são verdadeiros tesouros que temos guardados para relembrar.

    Ninguém relembra coisas que ficaram à solta. Coisas são os nomes que damos para qualquer …. coisa, mesmo. A palavra é errada, usada de forma errada, mas lugar comum em todos aqueles que têm lembranças guardadas.

    Aquela coisa que me aconteceu, droga, nem quero lembrar dela, por muito tempo. Aí sim temos uma coisa real.

    Mantenha os melhores acontecimentos na sua vida, aquela aventura que merece ser revivida, porque ela não é uma coisa, ou, pelo menos, qualquer coisa para ser tratada com desprezo.

     Nilson Lattari é Escritor

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  • OS DOIS JOÕES por Nilson Lattari

    OS DOIS JOÕES por Nilson Lattari

    Para iniciar nossa conversa, não vamos falar sobre religião. Qualquer que seja. Esse religare, essa necessidade de se religar com o divino, e, no caso, buscando um credo para esse religare não faz parte do meu universo, embora respeite aqueles que se sintam seguros assim. É um direito querer se sentir seguro, espiritualmente, da forma que escolher, buscando paz, saúde e sabedoria e não as coisas de César, na minha maneira de pensar. Segue a admiração por aqueles que, realmente, difundem o sentido divino da existência de Deus e traduzem as histórias bíblicas com seu sentido espiritual, não ligado a interesses.

    Mas, vamos falar de João, o Apóstolo. Para mim, João tem o texto mais bonito escrito no Novo Testamento. Porque ele fala do amor. E, constantemente, é evocado por suas palavras clássicas de conhecer a verdade e encontrar a libertação.

    Sempre pensei, cá com meus botões, que esse conhecer tem um outro sentido.

    Quando estudamos, por exemplo, procuramos nos livros o conhecimento. E vejo o conhecer a verdade como procurar o conhecimento, e o conhecimento está em todo lugar, acessível, em mentes probas, em textos bem construídos, e não em um só lugar, ou nas mãos de um ou outro pregador.

    Dois Joões foram e são pregadores. Aquele que incita procurar ou conhecer a verdade e aquele que revela a verdade sobre o futuro da humanidade, através do Apocalipse, que significa Revelação.

    Muitos veem os sinais da chegada desse momento em alguns eventos que acontecem aqui na terra. Sejam os eventos catastróficos provocados pelo homem ou pela natureza. E os incidentes continuam, como consequências do movimento humano ou da reação da natureza, em seu processo natural ou causado por esse movimento da humanidade.

    Muitos males se espalharam. Em alguns momentos ficaram restritos a locais pouco acessados, e, portanto, lá ficaram, até mesmo desconhecidos. Hoje, o mundo globalizado leva a informação muito mais rápido, e leva também a moléstia, a guerra e a morte, cavalgados pela raiva, pelo ódio e pela indiferença com a dor do outro.

    Vivemos um dos estágios do Apocalipse?

    Creio que vivemos mais um dos fatos que pode afetar, exponencialmente, a humanidade, já que somos mais numerosos e temos a capacidade de espalhar com mais rapidez os nossos males.

    Voltemos ao primeiro João, o que nos incita a buscar a verdade. E esbarramos naquilo que seja a verdade, o real, o que é. Não existe uma verdade soberana, mas a

    procura por ela. O problema é que cada um se diz o dono da verdade que beneficia seu próprio julgamento ou preconceito. Não há uma preocupação em conhecer a verdade do outro, quando ela não interessa, e deixa de ser verdade a partir do momento que afronta os interesses individuais.

    Verdade, hoje, é passar pano, dar um brilho, colocar em um pedestal, alçar as mãos para os céus e seguir em frente: a pós verdade. Verdade, hoje, é atropelar o diferente. Verdade, hoje, é sapatear sobre o concreto, uma doença real e existente que já ceifou 1.000.000 de seres no mundo! Mas alguns insistem em comparar com outras menores, passando o pano da mentira sobre a verdade real.

    Um João pregou o amor e nos pediu para ir atrás do conhecimento, e, por trás dele, encontrar a verdade. O outro João, e não poderia deixar de ser o mesmo, porque: A qual dos apóstolos o Mestre confiaria o conhecimento de tudo?, nos faz uma revelação; Não procurar conhecer a verdade está nos levando à destruição?

    Repetindo o surto da gripe espanhola, assim como tantos outros iguais ou em menor escala, ou repetindo os mesmos atritos, motivados pelos mesmos motivos, pelos derrotados inconformados, alguns se revoltam contra as medidas sanitárias que poderiam evitar, talvez, essa cifra planetária de mortos (Um milhão!). Não aprendemos com a história, e, portanto, damos as costas para o conhecimento da verdade, do ensinamento, e ouvidos e forças para aqueles que são mentores do Apocalipse individual, egoístas para eliminarem o outro, apenas porque discordam do seu suposto conhecimento da verdade.

    Existem dois Joões ou apenas um tentando nos convencer que somos os frutos dos nossos próprios males por não querer entender e revelar o conhecimento?

     Nilson Lattari é Escritor

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  • NÃO SEI QUE SEI por Nilson Lattari

    NÃO SEI QUE SEI por Nilson Lattari

    Em uma frase, dizer que eu sei que não sei faz todo o sentido. Afinal, uma das grandes virtudes humanas é assumir o que não se sabe, revelando uma humildade diante do desconhecido, e, ao mesmo tempo, não se sentir diminuído diante do outro que demonstra conhecer determinado assunto, com propriedade, e a postura do não sabedor é procurar esse conhecimento, e passar ao estágio do sei.

    Muitas vezes, o sabedor, aquele que tem a propriedade de conhecer o assunto, também é suspeito. Afinal, se nos deparamos com um assunto desconhecido, a pergunta daquele que procura o saber é: que fonte é essa?

    A fonte do saber do não sei está no desconhecer, porque se procuramos a fonte para suprir nossa sede, a água deverá ser, presumivelmente, cristalina, caso contrário aquele que procura o conhecimento estará pescando em águas turvas.

    Os saberes vêm de muitas formas. Dentre elas, através da arrogância, do dedo em riste, na imposição, ou vem através da força dos argumentos, espalhados sobre a mesa, pinçados na medida da necessidade do sedento.

    Aquele que chega, sabendo do seu desconhecimento, se aproxima de um modo curioso, como um buscador das verdades. Se aproxima com cautela, porque a contaminação do não sei, como saída fácil, é como uma coceira que vai chegando e aquela vontade de continuar patinando e se esfregando nas inverdades é tentadora. Nisso se envolve a vaidade, a mãe de todos os pecados.

    Mas, existe o não sei que sei, que é, por si só, a confusão do conhecimento. Ele é a vergonha que não quer ser assumida: não saber. As fontes são aquelas tiradas do não sei onde, amparadas pelo não se sabe por quê e o não importa o que está escrito, importa o que eu acho, basicamente, ouve vozes na sua cabeça. E, diante do desconhecimento do outro, o pretenso conhecedor assume a vaidade do pretenso saber e entabula teorias absurdas, pretensos personagens arbitrários entram na pantomina e se tornam um tal amigo que trabalha em um tal lugar, ou o famoso primo de alguém que jaz no mais profundo lugar desconhecido.

    No mundo altamente competitivo de hoje, demonstrar o desconhecimento é, antes de tudo, um ato de coragem. Não maior, no entanto, do que a coragem que têm alguns de demonstrar uma sabedoria que se ampara no total vazio. Dizer o sei é muito mais fácil do que o não sei, é muito mais gratificante, embora amparado no nada. O personagem se arrisca a passar vergonha, que é maior ainda quando vem acompanhada pelo desprezo, pela indiferença, e cai no ridículo, e se torna o personagem da piada na próxima roda de conversa.

    Não sei que sei ou sei que não sei é a encruzilhada que define o ser humano. Buscar o conhecimento é trabalhoso, peça rara, e dominar todo o conhecimento é impossível.

    A sofisticação do não sei é tão grande, que o suposto conhecedor é capaz de elaborar números e estatísticas mágicas tiradas de um fundo falso do caráter. Quando pego na mentira, o não sei rotula o outro, aquele que o desconcerta, de alguma coisa extremamente ofensiva qualquer. É como utilizar livros como arma de ataque físico, e não abri-los e dissipar, de vez, o não sei aquilo que eu gostaria tanto de saber.

     Nilson Lattari é Escritor

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  • AS NOSSAS HUMANIDADES por Nilson Lattari

    AS NOSSAS HUMANIDADES por Nilson Lattari

    Os momentos de quarentena e reflexão, para aqueles que estão reclusos, principalmente, além de provocar inúmeras lives de famosos falando sobre seus confinamentos, nos leva a pensar sobre várias coisas. Uma delas, se a extinção da humanidade estaria próxima, dado o comportamento de alguns semelhantes.

    A extinção de algumas espécies, aparentemente, não sendo um grande problema humano, apenas um lamentável acontecimento, tem consequências sérias para nós, porque as espécies fazem parte da cadeia de subsistências de espécies que, inclusive, nossa sobrevivência depende.

    Cenários apocalípticos filmados e refilmados mostram que a humanidade pode ser colocada em risco, apesar de que sendo 8 bilhões de seres, as probabilidades de sobrevivência de alguns garantam ser risco zero de extinção.

    Baseando nossas humanidades espalhadas nos diversos comportamentos de alguns dos nossos, diante da atual pandemia, podemos pensar quais humanidades sobreviverão e quais se extinguirão: um ponto importante.

    As recentes imagens dos frequentadores de bares do Leblon, tradicional reduto de baladeiros na cidade do Rio de Janeiro, dizendo que querem ser somente felizes, e outros passeando tranquilamente nos parques e praias do nosso imenso litoral, retratam uma das facetas da nossa humanidade. Gente corajosa chamando o vírus pra briga, de algumas personalidades tecendo comentários pouco cristãos de como um mais pobre e sem oportunidades anteriores, que ocasionaram a falta do teto no futuro, deva ser tratado, confrontando-se com o comportamento de outros, preocupados na fabricação de máscaras a serem distribuídas e alimentos também, ou de profissionais altamente remunerados abrindo mão de seus salários para que outros mais humildes sobrevivam, ou até mesmo o comportamento de empresas fazendo doações bilionárias para ajudar, e desenvolvendo marketing, ao mesmo tempo que ninguém pergunta se lá aconteceu alguma onda de demissões, trazem para nós o conceito que iniciou esta reflexão: quais das nossas humanidades serão extintas ou não?

    Nossas humanidades são muitas. Desde aquela que preserva o isolamento, porque é economicamente possível, mas que não o desfaz em respeito àqueles que não podem e precisam trabalhar, e aqueles que, embora economicamente frágeis, insistem em ir para as ruas sem, necessariamente, ser preciso.

    Nossas humanidades estão em cheque: entre aqueles que pensam na sobrevivência do todo e aqueles que se arriscam, até que o vírus os alcance, e depois

    lamentem, embalados vai saber por qual desvio ideológico ou loucura e aqueles que respeitam o inimigo, esperando que a ciência, sem viés ideológico, os socorra.

    Ao final, alguns se salvarão e outros não. Resta saber qual o percentual de humanidade será maior: a preservacionista ou a que se arrisca.

     Nilson Lattari é Escritor

     

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  • A PERDA DO TEMPO por Nilson Lattari

    A PERDA DO TEMPO por Nilson Lattari

    Muitos se queixarão da perda do tempo, durante esta pandemia. Aprendemos a contar o tempo como algo numérico, uma relação entre a vida que segue e o tic tac do relógio, sempre, inexoravelmente, seguindo adiante. O tempo, assim, passa a ser contado como uma contabilização que sempre encerra o dia, a semana, o mês e o ano. Findamos cada um deles, realizamos nossas perdas e danos e seguimos em frente.

    Mas o tempo não perdemos, ele se perde diante de algumas situações em que nos colocamos. A perda do tempo não é um prejuízo dele, mas nosso. O tempo não se perde. O tempo é uma planilha em branco a ser preenchida por nós. Perdemos vida, diante do tempo, quando esperamos por alguma coisa acontecer que a mude, nos dê um novo rumo. Não temos que apostar corrida contra o tempo, ele é incansável.

    O tic tac do relógio nos mostra que, a cada minuto que não fazemos algo em nosso proveito, a contabilização é a perda. O tempo não permite as lamentações. O tempo não admite que fiquemos na beira da estrada vendo-o passar. E ele passa como o vento invisível, e devemos aprender a navegar com ele, a voar com ele.

    Para alguns, sair para as ruas, desafiando o inimigo invisível é lutar contra a perda do tempo. Mas o tempo tem alguma coisa de estranha e misteriosa dentro dele. Há tempo para tudo, para plantar e para colher, para viver em paz e para lutar. O tempo admite todas essas coisas. A escolha, no entanto, é nossa.

    Podemos escolher em se perder no tempo ou ganhar no tempo. Os ganhos são possíveis, assim como as perdas. Não há tempo perdido, há tempo mal gasto. Podemos deixar a janela, se lamentando da vida que passa lá fora, ou investir no tempo que temos. Tempo é oportunidade que não se perdeu. Os ganhos no tempo estão nas oportunidades que aparecem. Mesmo em uma fila, um livro pode ser o ganho do nosso tempo. A espera por uma entrevista que pode ser mal sucedida pode ser um ganho de experiência, quando conversamos com as pessoas em volta e entendemos onde elas erram ou acertam. Tempo é experiência trocada.

    Logo, nós não perdemos tempo, nós perdemos o tempo, perdemos a oportunidade de aproveitar o tempo que temos para aprender mais, se informar mais.

    Alguns perdem o tempo quando se entregam a disseminar mentiras via web, e não para ganhar as possibilidades de um mundo melhor, mais humano e amigável. Não podemos perder o tempo, porque ele não é uma mercadoria que podemos comprar ou vender. O tempo é democrático. É igual para todo mundo. E podemos fazer dele o que quisermos. Muitos se perdem no tempo fazendo coisas inúteis, inclusive roubando o tempo de outros. Precisamos deixar de se perder no tempo para outros, procurar deixar de causar perdas e danos com o nosso tempo. Alguns ou quase todos vendem o seu tempo em troca de valores. Mas para aqueles que veem o tempo como possibilidades, podem vender o seu tempo, mas adquirir experiência suficiente para não precisar vendê-lo no futuro.

     Nilson Lattari é Escritor

     

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  • QUARENTENAGENS por Nilson Lattari

    QUARENTENAGENS por Nilson Lattari

    Desde o meu isolamento, vendo o mundo pela janela, acompanho as pessoas passarem na rua, e vou verificando aquelas que usam a máscara de proteção ou não. Algumas a utilizam, nem sempre no lugar apropriado.

    Vejo um idoso de seus noventa anos passeando, tranquilamente, na rua, dando a volta no quarteirão. Me pergunto: quantas pessoas existem na vida que não sabem o prazer de poder ler um livro, assistir a um filme sem nada para importuná-las? Nem sempre podemos fazer de nossa vida, nossa maneira de viver, um modelo para todos. Somos diferentes, mas, também, devemos perguntar se não podemos ser iguais em alguma coisa? Como estar engajados na mesma luta.

    Temos vizinhos novos, e o entra e sai é constante, e me surpreendo quando vejo a máscara de pano pousada, tranquilamente, na maçaneta da porta, como se fosse um apetrecho qualquer, um tipo de guarda-chuva, que estará em algum momento esquecido em algum lugar. Recebem visitas, enchem a casa e, chegando do mercado, o carrinho de compras entra pela cozinha. Mas, ao sair, colocam a máscara.

    Em um lugar em frente, parecendo em obras, alguém sai carregando uma quantidade de canos, seguido de uma mulher, que ao ser aberto o portão por alguém responsável, cumprimentam-se com o apertar das mãos. A mulher, ao sair na rua, põe a máscara no rosto, mesmo depois de cruzar um pátio até a saída, ajustando-a com a mão que recebeu o cumprimento. O seu acompanhante não usa.

    Chega o sinhorzinho da sua caminhada e começa a conversar com um outro que está sentado em uma vitrine de uma loja, se chegam próximos, trocam conversas, ele com a máscara, o sinhorzinho não. Ele volta e encontra um outro idoso, também sem máscara, e começam a conversar, como se o tempo não existisse, ao menos este tempo.

    Um e mais outro passam com seus pets, caminhando pela calçada, e eu me pergunto quando o animal chega em casa, quais os cuidados a fazer? Lavar as patas, esfregar o pelo, onde estará o vírus?

    Alguns estudiosos dizem que o vírus permanece no ar por algum tempo, e depois cai no piso. Se o vento leva uma simples folha, não elevará do solo o vírus?

    Passa, novamente, uma pessoa conhecida com uma comida comprada pronta. É conhecida, chamamos sua atenção e ela diz que precisa comer. Dali a um tempo ela está, novamente na rua, trazendo outra quantidade. Não nos olha mais, segue adiante.

    Um artigo ou comentário que li na internet aponta uma pesquisa feita por uma doutoranda em psicologia traçando um perfil das pessoas contrárias ao isolamento: estudante, baixa renda, desempregado e de perfil de direita. Fico pensando sobre o estudante. Seria a falta das aulas e a vontade de sair pelas ruas? Baixa renda e desempregado a razão seria, presumivelmente, a necessidade em auferir alguma renda. Com perfil de direita, seria um revolucionário contraditório? O que seria perfil de direita para um estudante, baixa renda e desempregado?

    O segundo aponta um negacionismo. Algumas pessoas devem se sentir acuadas, e o negacionismo é uma defesa em querer acreditar que não é bem assim. Se todas as autoridades ficam em uma posição de apoio, o negacionismo é menor, mas, se alguém destoa, é o suporte suficiente para acionar o gatilho. Sobre esse ponto, li, há muito tempo, longe desse instante pandêmico, que um terço da população apoia causas, outro terço não, e o restante das pessoas apena observa os dois grupos e toma uma decisão.

    É o pior momento para bater cabeças.

    Um terceiro aponta uma ansiedade. As pessoas vivem ansiosas por liberdade, por querer que tudo acabe rápido, querendo por um fim ao pesadelo.

    Enquanto isso, da minha janela me debato, o que eu sou, como me sinto. Não sei explicar. Mas viver sem que haja amanhã faz todo o sentido, pena que confinado em um espaço tão pequeno. E o nosso destino e esperança nas mãos de um terço e de outro que pode apoiá-lo.

     Nilson Lattari é Escritor

     

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  • QUARENTENA E ABSTINÊNCIA – A TRAFICANTE – Nilson Lattari

    QUARENTENA E ABSTINÊNCIA – A TRAFICANTE – Nilson Lattari

    Depois de ter bebido minha bebida amarga, deixar o armário e seguir a labuta, o meu esconderijo, não tão escondido assim se desfez. Seria como se eu estivesse em uma sublocação de uma quarentena. No escurinho, não tão do cinema, e bebendo uma bebida que eu já não tinha a menor ideia do que seria, não, necessariamente, um drops de anis, é claro, que após ter encarado uma bebida estranha, como alguma coisa agridoce ou coisa parecida, sair do armário foi brincadeira, tipo tirar pirulito ou coisa assim, de boca de criança (?!Caramba, quem faria isso?!).

    Mas, nada termina quando se começa de uma maneira estranha. Talvez uma bebida de cor amarronzada um pouco doce a faria esquecer, minha abstinente, do seu sofrimento por um chocolate.

    Porém, e sempre existe um porém, faltou o sorvete. Tirando a possibilidade de poder fazer gelar qualquer coisa, um sorvete é uma coisa insubstituível. Aquele afundamento da colher dentro de uma substância cremosa, ascendendo, perigosamente, em direção à boca, enchendo-a; nada é possível substituir.

    Minha abstinente não estava conformada em não poder criar qualquer coisa assim. Até sugeri que poderíamos, quem sabe, fazer uma compota de jiló, misturada com aquela coisa agridoce, e congelar, seria um sorvete de … figo.

    – Jiló! Ela exclamou, levantando do seu metro e meio de altura, que parecia alcançar o teto, me fazendo mergulhar nas profundezas da minha diferença de vinte centímetros a mais.

    Me calei, engolindo a sugestão vegetariana, pensando em voltar para o armário, quando ela exibiu a chave do mesmo, tornando impossível a fuga, e rindo porque eu ainda pensei no armário da cozinha, ou mesmo na geladeira. Não! Sorvete, nem pensar, pensei eu, gelado por dentro e por antecipação.

    Os ingredientes sugeridos pelos Influencers não tinham nenhum componente na casa e, portanto, a fabricação do sorvete seria impossível. Só restava a sua desistência, reduzindo-se ao seu metro meio de altura.

    Até que no último pedido de feira havia um segredo nas compras. Uma mensagem subliminar dirigida à vendedora, que apesar de não ter sorvete em sua loja, teria contatos. E por aí fui descobrindo uma rede de tráfico de amantes de sorvetes, inclusive com cotação sobre sabores: incrível, ela conseguiu subornar a vendedora que, com certeza, amante da guloseima, não se fez de rogada fazendo as compras, mesmo que não fornecesse na loja.

    No entanto, tendo em vista o contato, minha abstinente criou uma rede de fornecimento via whatsapp, cooptando amigas que também se sentiam deficitárias sobre isso.

    Foi um baque. Afinal, depois de estabelecer essa forma de traficar entre as amigas o que ela não sugeriria a mais? E, por mais incrível, conseguia fazer um sobrepreço auferindo renda pelo tráfico de sorvetes.

    Ameacei, é claro, denunciar esse escalabro, inclusive com o proprietário da loja, no que, novamente fui ameaçado com a ascensão do meio metro de altura, poderia prever que o meu final poderia estar no fundo do armário, e, quem sabe, trancado com a chave que ela, ameaçadoramente, balançava na minha frente.

    Uma coisa é certa: nunca se atreva a encarar uma abstinente em busca de sorvete, o seu final poderá ser uma gelada.

     Nilson Lattari é Escritor

     

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  • QUARENTENA E ABSTINÊNCIA II – Nilson Lattari

    QUARENTENA E ABSTINÊNCIA II – Nilson Lattari

    A minha abstinência continua ativa. Parece que esqueceu os doces, inexistentes na casa, e até as palavras adocicadas estão raras em seu vocabulário. Mas, como eu disse, fica pela casa tentando imaginar, penso eu, em alguma estratégia que satisfaça a sua vontade de chocolates e sorvetes.

    O seu olhar intimidatório me recolheu ao fundo do armário, de onde posso ouvir seus movimentos. Parece que a minha ausência não foi sentida, tendo em vista que há barulho na cozinha. Posso ver, pelo orifício do armário, que ela passa, frequentemente, com um livro que me parece de culinária. Ouço o computador, quem sabe sintonizado no Youtube, de algum influencer falando sobre receitas. Mas a voz dela não é muito convidativa, porque o teclado do computador está frenético.

    Ela insiste em perguntar ao Google, com uma certa rispidez, no que é respondida, simpaticamente, pela mocinha, quanto à fabricação de açúcar caseiro. Com a resposta negativa, a sua exasperação começa a se manifestar.

    Ouço barulho na cozinha, o micro-ondas funcionando, a batedeira e outros aparelhos domésticos. Há um intervalo, um muxoxo de decepção e a privada é acionada. Não entendo bem a relação das coisas, mas, do fundo do armário somente posso fazer conclusões, e não são precipitadas. Qual seria a relação entre o barulho da cozinha e a descarga do banheiro, ou a relação seria ao contrário? Fico assustado.

    Quais os produtos que tenho em casa que poderiam lembrar produtos adocicados? Nas últimas compras, antes da quarentena, ela insistiu em comprar um detergente sabor jabuticaba. Pensei eu por que deveria comprar um detergente sabor jabuticaba? Pratos e panelas precisam de sabor para serem limpos? Mas, seria uma opção açucarada?

    A geladeira abre e fecha e o micro-ondas novamente está em ação. Ela solta uma expressão de satisfação, quando abre a geladeira. Logo depois vai até a privada e a aciona, volta ao micro-ondas, e volta até o banheiro. Tento estabelecer a relação entre as idas ao banheiro e a atividade na cozinha.

    Pensará ela em alguma relação de alquimia para poder fabricar um tipo de glicose? Só me resta esperar.

    A casa está em silêncio e sinto passos caminhando lentamente até o quarto, onde está o armário onde estou escondido.

    A porta, subitamente, abre, e ela me apresenta um copo com uma textura marrom, um pouco pegajosa e que não se movimenta. Ela introduz uma colher. O copo está gelado. Ela me diz, autoritariamente:

    – Beba!

    Eu respondo, timidamente:

    – Se você descobriu a fórmula caseira da glicose, saiba que a minha não pode correr risco.

    – Beba! Ela repetiu, sem piscar.

    Aquela substância marrom, pegajosa me causou um pouco de asco. Mas, eu respondi, corajosamente:

    – Parece m…

    – Isso mesmo, beba!

    A sua voz foi uma ordem e eu bebi, uma coisa estranha, uma misturada de coisas. Parecia ovo, yogurte desnatado e casca de kiwi, arrisquei.

    Ela disse:

    – Isso mesmo, uma mistura de tudo que eu achei em casa.

    E o pior é que parecia doce.

    – Na próxima, eu tenho que conseguir o sorvete, ela disse.

     Nilson Lattari é Escritor

     

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  • QUARENTENA E ABSTINÊNCIA – Nilson Lattari

    QUARENTENA E ABSTINÊNCIA – Nilson Lattari

    A palavra quarentena, hoje, domina todo o cenário mundial. As pessoas estão antenadas, linkadas no termo e, ao mesmo tempo, isoladas dentro de seus lares. O mundo está conectado porque todos procuram as notícias, enquanto os motoboys dominam as ruas, acompanhados por aqueles que necessitam trabalhar; as ruas estão paralisadas.

    Todos sofremos, também, da abstinência da ida ao supermercado, aos restaurantes, a um passeio no final de tarde, até a praia, à academia e um papo com os amigos em um bar.

    Porém, a palavra que me retém é a abstinência, dentre as duas. E, com ela, a companhia ao meu lado. Sim, porque o caso é grave e algumas vezes um pouco assustador. Vou explicar.

    Estou em casa com uma mulher com abstinência de chocolates e sorvetes. Parece brincadeira mas não é. Cada vez mais, a decepção de abrir a embalagem plástica de sorvete, pela enésima vez, e, nela, encontrar o feijão congelado eleva a angústia. Não, existe ainda a miragem desértica de imaginar que aquilo seria sorvete de cacau 100%, talvez meio amargo, quem sabe. Uma abstinência em busca de algo doce pelo ar. Isso me lembra um desenho do Tom, o gato, e o Tweet, aquele canarinho, quando, às vezes, formavam uma dupla amistosa. Lembro um episódio em que a vovó, então a dona deles, deixou-os em uma cabana isolada pela neve e foi em busca de comida. O Tom ficou preocupado com a falta de alimentos pela demora da vovó. E foi tranquilizado pelo canarinho, que lhe disse que estavam servidos de comida, porém, somente alpiste havia ali. O Tom ficou desesperado e lutou contra a tentação de devorar o companheiro.

    Seria mais ou menos isso, se a abstinência aqui em casa, também pela dieta açucareira minha, e a total inexistência de algo doce em casa não estabelecessem a mesma relação.

    Algumas vezes, fico um pouco preocupado com o excesso de carinho com os companheiros de quatro patas e com ela, a minha abstinente, chamando-os, carinhosamente, de meus docinhos de coco. O olhar é um pouco, ou melhor, temerário.

    Aquele olhar perdido de alguém que procura o chocolate no ar, fazendo pasta de amendoim enroladinha no pão integral, imaginando uma língua de sogra. Refleti, assim, pela sobrevivência de ambos (no caso, eu incluído), que evitaria os filmes água com açúcar, diálogos melosos, músicas melodiosas (que vem de algo meloso) e a Luísa Mel sendo bloqueada, nem pensar, e nem uma palavra sobre a minha taxa de glicose, que está um pouco alta, para não me converter em algo comestível. O açúcar mascavo, escondido no fundo do armário, seria uma tentativa última de barganha, para conter essa ânsia.

    Uma dessas noites acordei, no meio da noite, suando frio, com um sonho. Ou pesadelo? Ela, vindo de gatinhas na minha direção, dizendo.

    – Docinho, sabe em que estou pensando?

    E eu pensei lá, nos meus sonhos temerários:

    – Que o companheirismo permaneça. Mas tem aquela coisa do até que a morte nos separe, ou a quarentena.

    Despertei me perguntando: De onde virá a salvação? No desenho, a vovó chegou, finalmente, e trouxe mais alpiste, para desespero do Tom.

    E ainda tem a Páscoa… estou preocupado.

    A saga continua.

     Nilson Lattari é Escritor

     

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  • ONDE A HISTÓRIA NÃO CABE MAIS – Nilson Lattari

    ONDE A HISTÓRIA NÃO CABE MAIS – Nilson Lattari

    Em posts anteriores, devo já ter afirmado que a História, depois da Internet, nunca mais será a mesma. Minha reflexão se alicerça no sentido de que a Internet, como mural documentário, sem dono, sem fronteiras, aberto a qualquer um que tenha uma tomada elétrica ligada ou um celular carregado no fim do mundo vai viver e reviver, não mais sem o controle dos governos, controlado por um mundo de ninguéns, provedores do próprio risco.

    Muito se especula a respeito de fatos políticos gerados nas décadas do século XX sem internet, com os documentos não digitais entregues à guarda de interesses, contra o qual a memória viva é o melhor testemunho contra a manipulação e contra o recontar da História, e a partir de interesses ideológicos ou de mercado.

    Muitas das memórias vivas poderiam recontar seu papel, escondendo fatos comprometedores, e baseados unicamente na confiança.

    Algum participante da famosa passeata da TFP, com o Marechal do golpe de 64 à frente, certamente, insatisfeito com seu proceder, permaneceu escondido no meio de tantos e difusos nas fotografias da época, e entregaram-se ao mutismo ou à mentira de que não se interessavam por política.

    O selfismo, no entanto, arma apontada para si mesmo, cai na rede, e a profusão de fotos, com participantes exibindo os mais disparatados mecanismos de defesa de argumentos, é o principal acusador daquilo que diz: “Nós sabemos o que você fez, naqueles idos da segunda década do século XXI”.

    A História nunca mais será uma história. Passaremos aos nossos filhos e netos aquilo que fizemos, com nome, endereço, camisas e adereços. Hoje, mais do que nunca, o selfie está no futuro, não no presente. Agora, ele é apenas uma suposta festa, no futuro será a porta da rua. Não haverá versões, não haverá condições, não haverá argumentos, contra fatos estampados na Internet, simplesmente ao puxar o nome de alguém, na versão de notícia, imagem e vídeo, tudo será revelado.

    Netos poderão perguntar o que aquilo significaria. Poder-se-ia, aproveitando as nuances gramaticais fartamente abusadas pelos ególatras interinos, dizer que foram coisas da juventude. Quando, na verdade, muitos

    estavam na suposta maturidade. Ao findar o regime nazista, os alemães sobreviventes se disseram opositores ao regime. E ficou combinado assim: aqueles que morreram eram os simpatizantes.

    Quais seriam as respostas para: Você era um golpista? Por que o cartaz defendia um corrupto? Não era outro o objetivo?

    Muitas explicações podem ser dadas, ou simplesmente o silêncio e a vergonha. A lata de lixo da História estará transbordando.

    A pergunta que a História vai responder, independente das reações, baseada em fatos é o que fizemos e o que deixamos para o futuro de nossos netos e filhos.

     Nilson Lattari é Escritor

     

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  • DE QUE PECADO VOCÊ SE ARREPENDE? – Nilson Lattari

    DE QUE PECADO VOCÊ SE ARREPENDE? – Nilson Lattari

    Com certeza, escarafunchando sua memória, lá dentro, guardado em uma gaveta empoeirada você tem um pecado. Possivelmente um segredo que somente você sabe, ou então um segredo compartilhado a dois, porque de três, dizia minha avó, o diabo fez.

    Ele deixa você triste, meio por baixo? Ele sujou de tinta a sua carne, marcou na sua pele algo que lhe dá um frio na barriga, um medo que ele desencarne, suba no muro, vá para o campanário da igreja, e grite para todo mundo, e o dedo acusatório de um crime, de uma desonra, penda sobre você, e você chore, se esconda, meta a cabeça entre os joelhos?

    E você, possivelmente, poderá cometê-lo de novo, se lembrar, relembrar. Ele tem algo de prazeroso, asqueroso, ele tem um apelo que não se deixa hibernar, que você quer matar, mas, apenas, o esconde? É isso?

    Ou então, por que não? Algo de uma nobreza imensa, que te encheu de orgulho, que mais ninguém sabe, que te faz sorrir, satisfeito, que o beneficiado nem soube. Você se arrepende não ter dito?

    Afinal, o que é pecar? Atentar contra os ditos e mandamentos da religião é pecado. Mas contra quem? Contra Deus? Ele existindo então não há segredo, você sabe e Ele também. Ele fez alguma coisa para você? Você não conseguiu seus desejos, a culpa é dele, do pecado?

    E que personagem é esse? Que de tão forte é capaz de figurar como um fantasma ao seu lado; é capaz de refrear você, ou então de fazê-lo avançar nos seus projetos.

    Pecado tem a ver com a culpa. A culpa é o personagem real, o pecado a ficção, algo que criamos, fantasiamos sobre alguma coisa que fizemos. E esse pecado é que é capaz de nos livrar para as entranhas do inferno, mas, enquanto ele é segredo, somente a culpa nós carregamos. São segredos, e a culpa é o arrependimento, que tanto pode ser para o bem ou para o mal. E algo tão excludente não pode ser real, está dentro da gente.

    Você não pode se arrepender do que viveu. E, com certeza, você aprendeu alguma coisa com ele. O pecado então pode ser o seu companheiro, e a culpa o seu próximo limite

     Nilson Lattari é Escritor

     

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