Categoria: Nilson Lattari

  • MINHA RUA por Nilson Lattari

    MINHA RUA por Nilson Lattari

    Minha rua é como um rio que vai carregando memórias, eternamente. Quando chego à janela e debruço o olhar sobre as pedras, relembro que ela mudou ao longo do tempo. Foram as casas que se tornaram prédios, foram vizinhos que encheram carros com as mudanças de vida, e novos vizinhos que foram chegando, buscando as informações que os outros levaram, e quem sabe as recontar.

    Minha rua é um rio que às vezes desce caudaloso, com as notícias terríveis correndo, contando horrores de crimes, de brigas, de desencontros de amores, e contendas entre antes amigos, durante inimigos e novamente amigos antigos que se retornaram.

    Minha rua de tanto mudar ficou muda, e de tantas coisas que aconteceram nela tornaram as janelas meras fontes de informações de gente antiga, e numa confusão de coisas, a memória ficou pra trás.

    Minha rua às vezes tem notícias boas, como o conserto do buraco, da água que corria infinita, das luzes que se acenderam novas, trazendo modernidades, dos amigos, já velhos, já avós e avôs, a passearem com seus netos, contando, quem sabe, novidades que trazem de um tempo anterior, apontando com os dedos os lugares onde correram, e os lugares onde tiveram o primeiro amor.

    Minha rua é um rio onde o ribeirinho somos nós, os vizinhos de longa data, que se conhecem e se cumprimentam e relembram o tempo onde, crianças, se divertiam nela.

    Minha rua é populosa, outrora tão vazia, que as festas que ocorriam eram mais que reuniões de patotas. Minha rua era um ponto de reunião, como o ouro de aluvião que subitamente um grupo encontra.

    Minha rua é transgressora, às vezes, perigosa, como o rio que transborda e arrasta as gentes, seus móveis, suas angústias e seus amores.

    Minha rua tinha namorados e namoradas, tinha cantiga de roda, hoje é um passar de carros, motos, que as brincadeiras de bikes, antigamente, bicicletas, já não encontram espaço no meio do asfalto novo, tão gostoso de passear, ao contrário dos paralelepípedos que pareciam cantar.

    Minha rua tem memória, dessas que até as pedras escondidas no asfalto sabem. Por isso, a memória, que fica escondida no engarrafamento, parece o gigante que dorme à espera de um despertar, aguardando que alguém, finalmente, faça um buraco na rua e ela volte a acordar.

    Minha rua tem memória, enquanto vivemos aqui. Um dia, quem sabe, alguém venha a perguntar: Que faz aquela chaminé ali, como um monumento a ninguém? Alguém talvez se lembre que era a casa de um homem que gostava

    de escrever e, por último alento, colocou na lareira ardente os últimos parágrafos da rua, e levou para sempre as memórias do lugar.·.

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  • DOIS EM UM BAR por Nilson Lattari

    DOIS EM UM BAR por Nilson Lattari

     

    Era um bar na rua do Catete, eu, com a barba por fazer, mas com alguma vivência, podia imaginar Machado, o de Assis, passar em um cabriolet, pince-nez a olhar as meninas que andavam apressadas, nas suas minissaias apertadas. E pensar que daquela cadeira pesada, com os pés redondos e antigos, aquela mesa de mármore encardido, as laterais dela com um floreio, o barulho das conversas, das frituras e a geladeira antiga de madeira, espelhada, de vez em quando acionando com o tranco do compressor, muitos outros antes de mim, que já passaram por essa vida, estiveram a olhar a mesma rua, com certeza, com muitas mudanças, talvez até ele, o Machado.

    O bar era antigo, passado de pai para filho, geração por geração, atestado pela sucessão de quadros com as fotografias dos ancestrais do dono que brilhando de suor, gordo e de cigarro na boca comandava as comendas e o burburinho da freguesia.

    A rua apertada, com os carros estacionados de cada lado e uma sinfonia de buzinas na fila única do engarrafamento trazia de volta a realidade.

    Eu olhava o Décio Avelar na minha frente, quase choroso, a me confessar que a sua Dineia, aquela mesma, filha da costureira, há tempos já não lhe dava atenção, e, naquele dia, de surpresa, arrumara as malas e escafedeu-se, descendo do sobrado que os dois tinham alugado na Correa Dutra, nem bem fazia dois meses.

    A minha cara não conseguia olhar o olhar do Décio, só conseguia vislumbrar a gravata aberta, a camisa suja de toda hora ele besuntar os dedos gordurosos na sardinha que ele triturava, ainda tiritando logo que saiu da frigideira, que o garçom esparramava na tigela no meio da mesa e espalhava um cheiro enjoativo pelo ar.

    Eu pediria que Machado, travestido de Bentinho, se materializasse no meio da confusão, e demonstrasse o quanto uma Capitu tinha a sua mais valia, na hora correta de um solene pé na bunda: O consolo de se sentir sofrido, mas aprendido a mais dura lição da vida. Será que o Machado andava ali pelos bares à noite, disfarçado, tentando vislumbrar seus personagens e tivesse deparado com um Bentinho, desses que ficam afogando as mágoas pelo amor

    perdido? Tal qual o Décio Avelar que misturava os choramingos e o triturar das espinhas da sardinha frita?

    Ele viria, hoje, descendo pelas ruas de pedra pé-de-moleque, com certeza, sem ainda compreender como uma história como a dele se prolongaria pelo tempo. E eu estava ali, diante de um derrotado, espanando as moscas, e aceitando meio a contra gosto as desculpas do sujeito já pelas tantas, com um cigarro com aquela cinza comprida, ameaçando cair na mesa, de que no fundo o errado teria sido ele. E eu pensava que o errado teria sido a escolha, e precisava parar com essa mania de se considerar um perdedor em tudo, se bem que lhe faltassem algumas pancadas, pá!

    A fumaça se espalhava por tudo, as conversas confusas, risadas, batidas na mesa, e o portuga da noite se esfalfando e dando ordens para um grupo de garçons sonolentos, de olhares cansados a levar e trazer garrafas de cervejas, um punhado de copos entrelaçados nos dedos, fazendo curvas entre as mesas, escapando, milagrosamente, das bandejas que lhes vinham ao encontro, trazidas pelos outros garçons.

    Voltei à vida e espantei a mosca que teimava em participar da nossa conversa levando os assuntos de mesa em mesa, como a colher informações jornalísticas para compor a pauta do jornal.

    Que coisa louca eu ali, dando atenção a um corno, evocando um Machado presumível que já ia distante no corso engarrafado do Catete. Machado já ia longe, que deveria espanar a poeira e dar a volta por cima, porque, afinal, haveria outras Dineias pululando por aí.

    Tinha vontade de ir-me embora, mas o Décio me prendia em sua choraminguice de teatro.

    Ficar imaginando ele, no banco, atrás do guichê atendendo os clientes e oferecendo o produto da vez, campanha do gerente na busca da promoção pela assiduidade em açoitar, a título de incentivo, os funcionários e, ao mesmo tempo, choramingando suas desditas, até poderia comover algum cliente que quisesse se ver livre de uma confissão fora de hora.

    Não ouso encarar o Décio de gravata e ficar posicionado diante dos seus olhos súplices à procura de uma resposta, como se eu tivesse solução para os seus problemas. Lembrei-me da Maria, a do Rosário, que me fez das suas, mas quando percebi, arrumei a Suzana, vizinha do lado, e a deixei meio

    sem jeito e a tal Maria, a do Rosário, que se imaginava esperta, ficou de boca aberta, e eu faceiro fui curtir minha desdita no meio de outro colo e outros seios abundantes.

    Mas, nada disso poderia dizer a ele que nem o Machado já indo bem longe decerto lhe daria as suas batatas, a título de prêmio de consolação.

    Até que o Décio desabou na mesa, derramando a cerveja, que o garçom solícito e mecânico veio limpar com sua toalha mais imunda, para limpar uma mesa mais imunda ainda.

    O desfiar da história do Décio dava um livro. Não existe banalidade maior do que um bar cheirando à cerveja derramada, com as mesmas moscas cumpridoras de horários a zumbir entre as mesas como as garotas em busca de programas, e um bêbado desfalecido e que eu teria, por força da nossa amizade, levá-lo para casa.

    Dali, consigo vislumbrar meu quarto no terceiro andar do número trinta e dois da Silveira Martins, e as pessoas a se acotovelarem na busca do ônibus, ou entrarem no bar e vendo a cara tristonha e a gravata aberta, engolindo mais um copo de cerveja, e o meu olhar perdido no tempo. Uma mistura de gente que vai para casa, cansada, e o grupo que tenta esticar a sexta-feira além do seu tempo, rindo, levando cervejas por cima das cabeças, as mulheres rebolando, sambando um samba imaginário.

    Eu ali.

    Me arrependo de ter atendido à ligação dele para conversar. A vida é dura, mulher a gente pega na esquina.

    – Topa um programa na casa da Guilhermina? As meninas são boa gente, dão consolo que nem mãe, colo quente, as ancas largas, bumbuns juvenis.

    – Quero não, quero a Dineia de volta.

    – Ora, meu caro, eu aqui me enchendo de literatura para te consolar.

    Pago a conta e vou embora, largando a mão do Décio no ar.

    – Que culpa eu tenho de não saber te consolar!

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  • O ÓDIO E O AMOR por Nilson Nattari

    O ÓDIO E O AMOR por Nilson Nattari

    Honoré de Balzac disse que o ódio tem melhor memória do que o amor. Entre a balança da escolha o que seria o ódio? E o amor? Alguém sente o ódio por causa de um momento onde foi vilipendiado, foi massacrado, humilhado por outro. Da mesma forma a demonstração do amor vem de algum fato, acontecimento, gesto que outro alguém nos deu, de coração limpo, franco, generoso.

    Nos tempos atuais, no Brasil, e também no mundo, o ódio passou a ter outra conotação. É justo que pensamentos se oponham a posturas políticas, sociais, é um argumento do pensar, do achar que o caminho certo, correto é um e não o outro, ou o do outro.

    O ódio atual passa pela querença de uma suposta igualdade. Todos, em uníssono, queremos a igualdade, o fim de desmandos, o fim de desacertos sociais, que geram a criminalidade. Mas, passam por caminhos diferentes.

    A grande questão é por que odiar tanto. Por que ter ódio, exigir o distanciamento, na forma de vestir e viver, como se a existência do pobre fosse fator primordial para estabelecer o diferente? Manter o pobre como uma reserva de contingência.

    Igualdade para alguns, não é igualdade para todos. Haja igualdade, desde que todos sejam como eu, ricos, brancos, bem nascidos. Isso é impossível. Ninguém nasce totalmente igual, ninguém escolhe, em sã consciência, nascer preto, pobre, em um lar já desfeito, ou ainda nem nascido. Somente aqueles que acreditam em carma, como solução para acalmar suas consciências, veem isso como justificativa.

    Existem duas ignorâncias que buscam espaços na sociedade brasileira: a ignorância dos desamparados socialmente, porque não recebem a educação justa e merecida, e explorando a própria necessidade criam discursos de libertação, mostrando com o próprio rosto, marcado pelas rugas das dificuldades, o discurso de forma crua, retratado na própria existência, no próprio fato de existir. E na outra, a ignorância na forma de protestar, com cartazes exigindo verdadeiras provas de não ter nenhum pudor de admitir que não leem a História, ou então nas formas grosseiras de estampar suas

    supostas indignações. Exibir sorrisos nos protestos, tirar a roupa, é o maior escárnio que se pode demonstrar pelo outro. Isso é ódio.

    Hipocritamente, as duas sociedades se encontram quando combatem a corrupção do outro. De um quando a corrupção grassa à vontade, mas mantendo o dólar barato e o financiamento fácil podem adquirir bens de consumo. Do outro, aceitando a corrupção, mas, que do mesmo jeito proporciona um bem-estar. É o rouba, mas faz; tanto de um lado para o outro.

    O amor se desfaz diante do menor contratempo. O ódio se perpetua. O ódio se alimenta do próprio ódio, até que as pessoas comecem a se ignorar, umas às outras. O ódio contamina, e, como o veneno que se infiltra pelo sangue, é difícil de descontaminar. O ódio já está instalado na sociedade brasileira. A pobreza culpa a riqueza pelo seu abandono. A riqueza culpa o pobre pelo próprio fato de existir. Os ricos, os bem nascidos, aqueles que lograram ter a oportunidade de estar no lugar certo, na hora certa, olham e desejam a vida dos outros povos, onde tudo é melhor. Não estão preocupados em transformar a sociedade brasileira, para isso teriam de sentir amor, e quando fazem caridade acham ter cumprido seu papel social. O ódio pede distanciamento.

    O que não percebem é que o ódio guarda a memória do desconforto, e chegará o momento em que eles se confrontarão. É inevitável. Por enquanto, escaramuças, depois a memória se transforma em realidade.

     
     Nilson Lattari

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  • AMAR EM TEMPOS REVOLTOS por Nilson Lattari

    AMAR EM TEMPOS REVOLTOS por Nilson Lattari

    Poderia dizer em tempos de cólera, mas, não pretendo roubar o título aproximado ou tema de Gabriel García Marques. Até porque as razões da cólera, hoje, não estão subordinadas a um triângulo amoroso, mas a uma coletividade que clama por justiça, cada um a seu modo, o que transforma, o ato de arbitrar, em justiçamentos para uns e alegria para outros. Vivemos tempos de perguntas com a nova realidade.

    Talvez um Romeu e Julieta modernos em que dois amantes são separados não por pais preocupados em não misturar linhagens, por preconceito e orgulho, mas, amantes separados por ideologias.

    Será possível amar alguém que pensa diferente de nós, nesse mundo turbulento? O Brasil se descobre dividido, amigos de longa data se estranham, e como é possível, perguntamos, que aquele que julgamos conhecer, nesses momentos se revela um outro ser, com pensamentos diversos.

    Beijar o outro, que pensa diferente, que se revela uma outra forma de pensar. Será possível amar alguém diferente no pensamento? Como dialogar com aquele que discordamos? Será possível dividir vida e espaço físico, filhos, com partidos, ideologias se entranhando no meio de dois?

    Amigos se afastam e são encontrados de tempos em tempos, com conversas pouco duráveis, divergências, e no final das contas que ele ou ela vão para lá. Mas, e o dia a dia? Compartilhamentos de assuntos espinhosos nas redes sociais. A aproximação diária, na leitura dos posts, a distância física que não permite um falar mais alto, uma certa imposição do ideário. E qual a surpresa em ver amigos e companheiros de infância, universidade revelarem-se conservadores, apegados a religiões, ou vê-los empunhando bandeiras vermelhas em alegres selfies em passeatas?

    E como amantes, viventes do dia a dia, cruzando olhares pelos cômodos das casas, dos lares, nas conversas com os filhos. Como amar em tempos tão difíceis? É possível deixar nas cômodas dos quartos, guardar ressentimentos e entrelaçar corpos e dizer palavras amorosas?

    São pensamentos que se combinam por pertencerem às mesmas gerações, ou não importando a idade, pensamentos comuns, ou pelo menos próximos são suficientes para que o amor se deixe transparecer, desde que a cólera se ausente?

    É possível esquecer os pensamentos diversos, se interessar pelo outro de outra forma, sob uma outra perspectiva? Como amar alguém que se confessa curtidor de determinada figura, abjeta para um e digna de ser reverenciada por outro?

    Somos um país buscando representatividade real para as ideologias que permaneciam na obscuridade, e amar em tempos de cólera, de aversão pelo pensamento do outro, diferente é mais um exercício de extrema dificuldade. Quanto estaremos dispostos a esconder nossas ideologias para conquistar o outro? E conquistado, como manter nossos pensamentos reais escondidos para que o amor permaneça?

    O amor resistirá ou se subordinará à cólera do outro, até que a raiva os separe? Poderíamos seguir o sinal dos tempos de cólera: amar sem seguir o outro.

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  • A CHEGADA AOS ANOS 60 por Nilson Lattari

    A CHEGADA AOS ANOS 60 por Nilson Lattari

    Os anos sessenta me trazem boas lembranças, sendo que as lembranças são boas quando os anos nos trazem não anos de grande valor numérico, mas vividos com anos de baixa amplitude.

    Naquele preciso dia em que eu fazia sessenta anos: os meus anos sessenta, não que ao acordar estivesse diante de alguma tragédia. Não é isso. O que poderia ser uma tragédia seria não ter a prerrogativa de se fazer sessenta anos. E, precisamente, naquele dia eu entrei em um banco, coisa que raramente fazia, para pagar uma conta.

    Quando estava no meio da minha fila, meu olhar, como sempre fez durante todos os cinquenta nove anos da minha vida, percebeu a fila à direita. Um número pequeno de cabeças esbranquiçadas e corpos um tanto indolentes, entregues à inércia de uma fila exclusiva. Quando as filas começaram as separações, o divórcio etário, o reconhecimento de que a pressa, a corrida contra o tempo passou à preferência daqueles com crianças no colo, deficientes e maiores de sessenta anos, irritava-me ver quase chegar ao guichê de caixa ou informações e a preferência exercer sua prerrogativa.

    Mas não havia superioridade para os sessenta. Na verdade, os sessenta eram o limite mínimo para uma guinada à direita.

    Ao levantar o olhar para o aviso que definia quem poderia frequentar aquela fila, me vi diante do fato consumado – “Fila preferencial para pessoas de sessenta anos ou superior”. O consolo ainda restava que, havendo superiores, eu me colocava em um nível ainda inferior. Eu descobri que a fila, aquela fila, seria a minha fila.

    Um grupo seleto de senhores e senhoras sendo atendido por uma funcionária exclusiva, quem sabe escolhida entre tantas, dado o seu jeito amoroso de lidar com aqueles exclusivos, com paciência incomparável para lidar com as reclamações e outros achaques.

    Não me senti confortável de abandonar a esquerda, por quem, aliás, sempre nutri simpatias, mas sendo convidado, gentilmente, pelo aviso postado na parte superior do guichê que a minha idade permitia estar à direita. Afinal, ao envelhecermos, ficamos mais conservadores, menos propensos às novidades. Mas eu não me sentia assim, apesar de viver em constantes atritos com os celulares sofisticados que me chegavam às mãos.

    É claro que me passou pela cabeça o momento em que, lido em jornal, Caetano Veloso, aguardando sua vez para comprar um ingresso de cinema, foi instado por seus familiares a comprar o ticket na fila exclusiva, sendo que, constrangido, seguiu em passos tímidos, sob os aplausos dos espectadores, após ser explicado que o músico não estava furando a fila por suas prerrogativas artísticas, mas por já estar na faixa dos sessenta anos.

    Não me parecia em estado de ser aplaudido pelos circunstantes, a não ser que deixando o meu lugar na fila, favoreceria àqueles na faixa zero a cinquenta e nove anos.

    A funcionária simpática e atenciosa atendia pelo nome sutil de Desirrè. Me sentiria tentado a explicar-lhe a razão do nome, deixando bem claro que o meu desejo não passava por estar ali em sua presença para pronto atendimento.

    Mas algo poderia ocorrer de pior. Se, no meio da fila, alguém, também por atenção ou desdém, imagino eu, tocasse meu ombro e dissesse:

    – Senhor, a sua fila é aquela, aquela da direita.

    Eu poderia declinar do convite. Afinal a placa não dizia, em momento algum, a palavra obrigatória.

    No espelho em frente, meus cabelos ainda não estavam totalmente brancos, e, afinal, na minha então fila, alguns exibiam fios brancos, até em maior escala que os meus. O que não me transformava em um penetra, alguém que rouba o lugar na festa de alguém. Também não seria de nada benéfico se alguns dos meus, então companheiros, dissessem em alto e bom som: “Se a sua fila é aquela o senhor está atrapalhando!” E também, por outro lado, as meninas que frequentavam a fila da direita não poderiam competir com as meninas que eu tinha ao meu lado, no lado esquerdo das filas.

    Fiquei eu ali, dividido na ideologia da minha idade. Até porque eu não poderia frequentar a minha fila. E com uma aparência, digamos, mais jovem, poderia dar um certo brilho aos meus companheiros etários. Decidi não fazer isso. A bem da verdade, não gosto de causar constrangimentos.

    Passei a imaginar que a lei tem um espírito. Montesquieu filosofou sobre ela e não estou a fim de interpretá-la agora. Mas, com certeza, aquele que elaborou a lei não pensou, necessariamente, na faixa etária, mas a formulou dentro de um espírito do justificado. Tendo uma lei um espírito formulador, imaginei que este seria na tentativa de estabelecer um parâmetro, um balizador para quem devesse frequentar a fila.

    Pude assim dizer, sem sombra de dúvida, que o meu espírito ainda não pertencia àquele que a lei propôs. Sendo assim, acho que a essa fila deva ser dado o valor daqueles que realmente precisem dela. Ou de mim, dando uma aproveitadinha, caso esteja com pressa por alguma coisa.

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  • IMAGINE OR IMAGINE por Nilson Lattari

    IMAGINE OR IMAGINE por Nilson Lattari

    As duas palavras do título têm o mesmo formato, tanto em português quanto em inglês. Título de uma letra emblemática feita por John Lennon. Eram tempos onde a imaginação corria forte, diante de um mundo caminhando entre a guerra fria de duas potências, e os ditadores que pululavam pelo mundo. Era um mundo alegre dentro de um subterrâneo, como se estivesse armazenando alegrias e possibilidades quando a virada acontecesse.

    Aquela geração hoje chegou ou passou dos sessenta e alguns perderam os cabelos em sua cabeça, porém alguns perderam bem mais do que os cabelos, perderam a imaginação de um mundo sem países, sem religiões, sem querer encontrar infernos abaixo dos céus, ou estar em busca de moradas celestes.

    Dessa geração, alguns ainda cantam em inglês, em seus apartamentos, ou ouvem saudosamente os CDs ou vinis, e o piano branco de Lennon ainda martela as possibilidades de um mundo imaginário, onde todos compartilhariam o próprio mundo real. Alguns ainda teimam em acreditar naquele mundo, enquanto outros reinventaram os países e suas fronteiras, se agarraram às suas propriedades, onde a presença do indesejável próximo não seja penetrada. O que nos leva a acreditar que estes curtem a música, mas não entenderam nada.

    Há dois mil anos um Homem tentou um mundo imaginário. Ele falava de um próximo, também Se revoltou contra as religiões e queria compartilhar o mundo no amai ao próximo. Muitos vão às missas e cultos, continuam com as suas ideias, “a velha opinião formada sobre quase tudo”, e também não entenderam nada.

    E o que houve com essa geração que veio logo após, criada por pais que amavam os Beatles e os Holling Stones e cantava Help e abominava o Vietnam, iam aos festivais de música, onde o protesto era a palavra de ordem, e hoje execram seus então ídolos, que continuam, teimosamente, a imaginar?

    Pedem ditaduras, choques de ordens, desinventando o imaginário de todas as pessoas vivendo em paz. Você pode dizer que eu sou um sonhador, mas acredite que eu não estou sozinho, eu espero que um dia essa nova geração se junte a nós, os sonhadores, e faremos do mundo um lugar único, com até mesmo aqueles que esqueceram de sonhar.

     

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  • A DOR QUE DÓI MAIS por Nilson Lattari

    A DOR QUE DÓI MAIS por Nilson Lattari

    Todos nós temos dores. De uma pequena pancada aqui, um roxinho que aparece depois de um encontro casual com algum objeto, o tal mau jeito nas costas (sempre as costas encontram esse mal para nós), o peso mal calculado na academia, todas capazes de nos fazer chorar, que seja uma lagrimazinha ou um muxoxo, uma cara triste.

    Choramos por dor, mas às vezes é bom chorar, porque choramos de alegria, choramos pela vitória e choramos pela derrota. Derramamos lágrimas de pura emoção, contentamento, pela perda, pela falta; tem gente que chora por tudo, até por tristeza.

    Chorar por dor é um desafogo, um descanso para a alma, como se um balde prestes a encher transbordasse finalmente por um motivo qualquer. Igual manteiga derretida que se esvai pelos cantos da manteigueira, quando a esquecemos fora da geladeira (sempre um esquecimento).

    E, nesse esquecimento, choramos para desaguar as mágoas, e no fundo não esquecemos coisa nenhuma, e a cada lembrança vem aquele caudal de lágrimas.

    Usamos lágrimas para tudo, inclusive quando dói demais.

    Mas, de todas as dores, daquelas que nos faz chorar, não conter as lágrimas, ou contê-las por um minuto, que o transbordo já começa a ultrapassar a barreira dos olhos, como a enchente que pega de surpresa a ponte, o reservatório de águas, além das suas forças; é aquela que não marca, não deixa o roxo, o vermelhão do encontro casual; não está na notícia da perda, que nos faz perder o fôlego, como aquele que as crianças vão buscar no fundo da alma, e que todos, em suspense, aguardam a chegada com alívio; o grito que abala o ambiente, que ensurdece os ouvidos, do ser contido no colo, na tentativa de apaziguar a alma que esbulha as gotas salgadas no próprio rosto ou no rosto de quem acalenta, é a dor do silêncio a mais triste.

    Nada acalenta o não retorno, a decisão sem volta, a comunicação do desfeito, do encontro do outro ou da outra que se completa em outro alguém, que não nós, e que nos tira do circuito amoroso, a dor da exclusão, da realidade, do fato em si, daquilo que atinge os outros e não a nós mesmos.

    É aquela dor que marca como o chumbo derretido, a fumaça que o fogo cruel deixa no ar, da atmosfera que será sempre lembrada, do dia sempre remarcado na folhinha ao longo de muito tempo, como a comemoração do vazio, do antes e do depois; do arrependimento de ter encontrado, mas uma dor que lembra também a experiência do nunca fazer de novo, promessas tantas vezes repetidas, mas que guarda no fundo uma mágoa transcendente, também transbordante, que se consuma em lágrimas a cada momento revivido.

    Rever as lembranças agradáveis até a desconstrução ao seu final é uma dor irreparável, incurável, que deixa sequelas, rostos tristes, esperanças de voltas nunca acontecidas.

    A dor mais sentida é a dor da indiferença, de saber que por mais que queiramos, que venhamos a insistir, a dor não reparará nunca a quebra do elo da paixão perdida.

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  • CHUVAS DE VERÃO

    CHUVAS DE VERÃO

    Tudo bem que no Brasil as estações do ano não sejam bem definidas, à exceção de um inverno chuvoso e de um verão extremamente tropical. Falo da indefinição quanto às outras estações. Até mesmo no inverno, no Rio de Janeiro, por exemplo, pela ausência das chuvas e com a presença do sol, temos o chamado “veranico” de julho. É certo que iniciando o mês de agosto, o inverno vem permeado por um ventinho chato, que é normal, mas, quando chega traz algo de inesperado.

    Mas, no verão, principalmente, as chuvas me trazem uma certa nostalgia. É quando os dias quentes são repentinamente banhados com as pancadas súbitas de uma chuva com suas gotas grossas e frias que nos surpreende nas ruas. E logo depois o sol dá o ar de sua graça, esbanjando claridade, iluminando os estragos pelas ruas. Em janeiro, as chuvas trazem as surpresas das enchentes e quedas de barreira, e em março elas fecham o verão.

    Mas, eu volto a lembrar da nostalgia que a chegada do verão me anuncia. Ele começa, não pela data, mas pelo fato, em novembro e traz aquela lembrança do Natal chegando, do final de ano, presentes, apertos de mãos, correrias, um ar diferente no ar. A minha melhor lembrança é um certo clima de coisa passada, de fazer novos planos para o ano que começa.

    E como as chuvas de verão são coisas passageiras, principalmente, os desejos de feliz natal, prosperidade, chavões entre nós, são passageiros, também.

    Porém, existem as outras chuvas de verão. Amores passageiros, amores de carnavais, o primeiro dia de trabalho no emprego novo, que, ao longo tempo, vai dando lugar ao tédio, amor que se distancia no tempo. Chuvas de verão são gotas que nos pegam de surpresa, não ventanias, são lágrimas quase de alegria que caem do céu nos surpreendendo. Ventanias são notícias amargas, súbitas e inesperadas.

    As chuvas têm o som ritmado nos telhados, algumas trovoadas provocativas, como um trem que passa de passagem sem parar na estação, um palhaço sorridente no alto do vagão anunciando o circo na cidade. Uma nuvem branca invade os bairros, obrigando os carros a acenderem os faróis. A vida é um pouco assim. Feita de assaltos e sobressaltos.

    Para falar em assaltos, falemos da nostalgia que nos chega de forma doce e romântica, nos faz pensar, de momentos e instantes passionais. Dos sobressaltos, somos invernos, outonos, primaveras, e verões, inconstantes, indefinidos. Somos nuvens passageiras, recheadas de chuvas de verão.

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  • A ARTE DE ESQUECER GUARDA-CHUVAS por Nilson Lattari

    A ARTE DE ESQUECER GUARDA-CHUVAS por Nilson Lattari

                – Senhor, o seu guarda-chuva! Disse a acompanhante do ônibus, lembrando o acessório, como se a última coisa que ela desejasse fosse devolver algo perdido para o seu dono, ou simplesmente lembrar que o pequeno animal de estimação, que havia sido a companhia na manhã chuvosa, não devesse ser abandonado assim, em qualquer lugar, encostado em uma parede anônima. Mas, simplesmente, dando um aviso como se fosse uma advertência.

    – Pensou que iria esquecer o coitado, né? Principalmente depois que a chuva passou, como a dizer quem comeu a carne, agora roa o osso.

    Quantas vezes, e por tantos, um guarda-chuva não esteve perdido encostado em algum lugar, deitado inerte em uma cadeira de espera, quando a chuva passa e ele passa a ser um peso a ser carregado como uma obrigação, um companheiro de casamento irremediavelmente junto até que a morte ou o esquecimento e perda o separe.

    Quem bom seria se pudéssemos esquecer guarda-chuvas que fossem a angústia, o desapontamento, a derrota, e tudo aquilo que de mau nós estivéssemos, obrigatoriamente, carregando. E carregando em dias chuvosos e nebulosos.

    Seria como um sol que se abrisse diante do infortúnio. Porta aberta para a alegria, em troca de sentimentos ruins esquecidos em uma varanda, em um beco, uma sala de espera de consultório, em um cinema, ou em um ônibus, levando para o seu ponto final aquilo que queremos nos desfazer.

    Guarda-chuvas são usados contra as gotas impiedosas que caem do céu, lembrados quando somos surpreendidos pelas águas em plena rua, na saída do trabalho, lembrados no tempo ruim, no vento que espalha o líquido celeste para todos os lados.

    Guarda-chuvas se batem e se cumprimentam pelas ruas tempestuosas, da chuvinha fina e irritante aos vendavais, como seres acima de nós a se olharem e finalmente, vitoriosos, a transformar as ruas em meios-círculos a se espalharem como plantações de estranhas frutas de diversas cores e desenhos pelas calçadas.

    Uma visão de cima de um prédio sobre uma multidão que caminha com guarda-chuvas pelas ruas transformam os seres humanos em seres alienígenas.

    Pendurados nos braços em paradas de chuvas, vão oscilando como objetos desnecessários, jogados nos ombros, como o estorvo, ocupando espaços tão necessários para um abraço, um cumprimento.

    Têm uma elegância, quando carregados de uma forma natural pelas ruas, são armas de defesa, de ataque, brincadeiras de crianças a desobstruir bueiros entupidos, a servir como sinalizador, apontando uma rua, como um dedo estendido, luta de espadachins, ou guardachins. Depois de usados são estendidos em lugares protegidos para secar e preparados para uma nova refrega, e o grande risco de serem esquecidos.

    Esquecer guarda-chuvas é uma arte praticada por muitos. A arte de esquecer guarda-chuvas poderia ser também um pouco a arte de esquecer problemas, esquecer infortúnios, esquecer a companhia indesejada, esquecer os dias chuvosos.

     
     Nilson Lattari

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  • BABEL DE NOMES por Nilson Lattari

    BABEL DE NOMES por Nilson Lattari

    – Muito obrigado, Laurilene.

    A caixa do supermercado, exibindo um reluzente crachá no peito, agradece, sem demonstrar surpresa com o cliente se dirigir a ela dizendo o seu nome.

    Nesse mundo de hoje, o que antes ficava oculto, agora é passado pelo crachá. Você olha para alguém, olha o crachá e lá está o nome. E nós começamos a descobrir como anda a imaginação dos pais. Antes, você contatava alguém e perguntava:

    – Qual o seu nome?

    E vinha a surpresa. Um nome comum, ou uma composição de nomes…

    Laurilene é um desses nomes que, em geral, assume essa junção de pai e mãe. Hipoteticamente, poderíamos arriscar e perguntar.

    – Laurilene, você me desculpe a intromissão, mas de onde nasceu esse Laurilene?

    – Ah, moço, minha mãe é Francislene e meu pai Laurindo.

    Possivelmente o Francislene já seria uma outra junção. E nessa cadeia de DNA de nomes poderíamos arrancar uma verdadeira árvore genealógica.

    A professora, por exemplo, solicita a presença na ficha de chamada do Michael, como em Michael Jackson. O garoto responde.

    – Ih, professora, meu nome não é esse não. O meu nome é “Mixael”.

    Vocês podem dizer que é preconceito. Mas não é não. Aliás, nessa história de nome, o mais interessado não opina. Fica lá o pequeno ser humano exposto aos preceitos artísticos de outro. Só lhe resta se vingar no próximo. No caso, o próprio filho.

    – Mãe, de onde você inventou meu nome?

    – Ah, eu tinha uma colega de trabalho, apaixonada por um tal com esse nome, sendo que o sujeito era um pouco cafajeste. Ela vivia chorando pelo tal. Um dia eu cheguei com você no trabalho e disse: Fulana! Olha o fulaninho aqui!

    – E ela gostou?

    – Não sei até hoje, ela não parava de chorar.

    – Aí, a senhora deu o meu nome por causa dela?

    – Foi.

    – De um cafajeste?

    – É.

    Com certeza, quando a mãe o chamasse de cínico, sem-vergonha, tudo faria sentido.

    – Muito bem, qual vai ser o nome do bebê?

    – Alex. Na verdade, ia ser Alexandre, mas como o apelido ia ser Alex mesmo, já coloquei tudo certo, tudo no lugar.

    – Meu bem, vamos chamar nosso bebê de Francisco.

    – Ah, não! Negativo.

    – Mas por que, não? Era o nome do meu pai!

    – Exatamente por isso. Vai começar como Francisquinho, Chiquinho, e depois que ficar velho, engordar, e ser dono de bar, vai virar Chico. Definitivamente, não. Põe Fernando. Pensando bem, também não, vai virar Nando.

    Ô coisa difícil.

    Um sujeito chega ao cartório e registra o nome de seu filho.

    – Qual o nome do filhão, fala com simpatia o funcionário.

    – Ele é Valdir, diz o pai.

    O pai sai orgulhoso do cartório e vê o registro do seu filho, e nele consta: Elevaldir.

    Registrado, carimbado e sem possibilidades de reclamação. O sujeito tem o filho e quem dá o nome é outro.

    Tive uma amiga que chegou ao trabalho e disse em alto e bom som.

    A partir de hoje quero que vocês me chamem de Elsa (o seu nome original era Elsa, mas com som de Z).

    Todos se entreolharam e perguntaram.

    – Mas, por quê?

    – Porque estou fazendo a faculdade de Letras e descobri que se Celso é com S e não se pronuncia Celzo, por que o meu tem que ter o Z? Negativo.

    – Mas não tem nada a ver uma coisa com outra. Você está fazendo uma sopa de letras de Filologia e Linguística.

    E ninguém a convenceu. Como a maneira como nominamos alguém tem a ver com a ideia que fazemos desse alguém, como por exemplo, Carlinhos, pelo jeito carinhoso, ou Carlão, um cara grande, ou um grande cara; nossa amiga passou a se chamada Madame Elsa (respeitando a ausência do Z). Uma pessoa diferente, meio metida.

    Outra coisa bem legal é o Maria. Tem muitas. Maria de todos os tipos e maneiras. Muito além daquelas paragens por onde Maria apareceu. Ela aparece, pede socorro, consola, vai à glória, anuncia, vai de Portugal para a França e depois decola até o México.

    – Meu nome é Maria.

    – Maria de….

    – Não. É só Maria.

    – Não pode.

    – Mas não tem não, moço.

    Pensando bem, é de uma originalidade!

    – Quero falar com o sujeito que fez a minha encomenda.

    – Ah, foi o Júnior. Ô Júnior tem um cara querendo falar com você!

    Aí você vai pensando: “Deve ser um molecote. Ele vai ver só. Parar de fazer os outros de bobo!”.

    Aparece um sujeito grande como um armário.

    – E aí, chefia, o que que manda?

    – Não, seu Júnior, acho que teve um equívoco aqui, e tal…

    – Ih! Esse problema é com o Gatão.

    Você imagina logo um sujeito bem apessoado, um galã. Aparece um sujeito calvo, com um barrigão, um andar lento e sonolento.

    – Aí, doutor, diz o tal Júnior, não é um gatão? Pois é, esse andar macio, meio de lado. Não é de um gatão?

    Nunca tome o nome pela pessoa. Por exemplo, Lula pode não gostar de peixe. Fernandinho, necessariamente, não precisa ser uma pessoa dócil. Fofão não é, necessariamente, fofinho ou fofinha, um amor de pessoa. Sansão um careca, ou um ex-careca.

    Mas não nos esqueçamos da nossa Laurilene.

    – Agora, falando sério, Laurilene, de onde apareceu seu nome?

    – Olha, moço, são os dois nomes das melhores amigas de minha mãe: Laura e Selene. Mas aqui entre nós, li no seu cartão de crédito que seu nome é Orozimbo. Pensando bem, ninguém merece!

     
     Nilson Lattari

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  • NERUDA – Por Nilson Lattari

    NERUDA – Por Nilson Lattari

                Quando conheci Neruda, por questões de destino, o li em espanhol. Não que dominasse a língua, era um aprendiz recente. Aprendi a respeitar a própria essência da poesia, quando a lemos em sua linguagem natal. Traduzi-la é uma tentativa torpe e manca de transformar um clima, patrocinado pelo lúdico da língua, em outra língua.

    Com receio de agraciar uma namorada com algum poema de minha autoria, dei-lhe de presente um texto que me pareceu perfeito: “Cem sonetos de amor”. Era chic presentear, naqueles tempos, um livro de Neruda. Todos liam. Estava até na música de Francis Hime.

    Nunca perguntei se gostara. Nunca comentou, pelo menos comigo. Acho que não, ou por não ter gostado ou não entender espanhol. Em nossa briga final, devolveu o presente, ao contrário da relutância da amante de Hime, na música. E foi assim, a discorrer no papel o infortúnio que passei a sentir, que me vi diante do poeta. Mas Neruda não falava de desafortunados, sua linguagem trazia a presença de um observador do mundo, e crítico de nossa pobre humanidade. Todos, que se dizem poetas, tentam e somente os magos conseguem.

    Nunca havia lido Neruda, o li depois disso, – eis aí a questão do destino, e acho que compreendi o motivo da influência da sua poesia em uma geração latino-americana, sedenta de liberdade política e consequentemente de um fazer poético que traduzisse, com sangue no lápis, derramado no papel, toda a frustração de sentir e não poder fazer, e por isso o dizer ficasse cada vez mais forte, escondido no surreal, no simbolismo de personagens, para romper com a própria inexistência da vida política que não podia ser dita.

    Agradeci muitas vezes a devolução do presente, e acabei, então, me dando um. Comprado por um impulso de moda, largado na existência, e na solidão, encontrei um desafogo para o fora que ganhei. Assim ganhei duas vezes. Fomos dois incompreendidos: eu e o poeta.

    Fico imaginando Neruda em seus gestos lentos, seu rosto hitchcockiano, com uma lente toda própria, o cachimbo, a boina a proteger a cabeça, o texto não dizendo sobre o homem. Mas o homem, através do seu texto, desnudando o mundo através dos pensamentos vagos e viajante temporal de elucubrações.

    Espremido no mapa magro do Chile, um homem distante, ao sul do mundo, se lança no discurso universal do anseio de liberdade que corria naqueles idos sessentinos, até culminar na ruína do socialismo saliente do povo chileno. O poeta morreu ao sucumbir os sonhos de liberdade. Envergonhada, a humanidade ficou ao ver o poeta preso em um mundo subterrâneo, submetido às sandices de fuzis e torturas infindáveis; entre uma doença ou um assassinato?

    Como seria um poeta na tortura?

    – Diga-me todos os poemas para que possamos destruí-los, retirando os pensamentos vagos e torturantes além de nossa compreensão, diriam os torturadores.

    Talvez respondesse o poeta, na pregação da liberdade que nutria e via, de verdade, a palavra única e incompreensível, dizendo que “Cuando aprendi com lentitud a hablar creo que ya aprendi la incoherencia: no me entendia nadie, ni yo mismo, y odié aquellas palabras que me volvían siempre al mismo pozo, al pozo de mi ser aún oscuro, aún traspassado de mi nacimiento, (…)”.

    Buscaria a mais incompreensível para seus algozes, na tentativa poética de continuar a ser incompreendido.

    Fui torturado pelo coração, por muitos anos, pelo abandono de Aninha. Apenas chorei, e escrevi. Aninha tornou o amor, para mim, incoerente, e mudei a minha forma de amar, mas sempre voltava para ele.

    Soube depois, se formou em Nutrição, e me enviou alguns postais sobre uma viagem à Europa. Perguntei-lhe se não gostaria de conhecer a América do Sul. Pensei num retorno, um passeio pela terra do poeta. Falou com desdém da minha proposta. Jamais ela entenderia Neruda, mas eu aprendi a amar os versos.

     
     Nilson Lattari

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  • E A COPA É DO MUNDO? Por Nilson Lattari

    E A COPA É DO MUNDO? Por Nilson Lattari

              O mês de julho de 2018 é a Copa do Mundo, o encontro das grandes seleções de futebol do planeta. É tempo de festa, ruas coloridas, muita camiseta amarela nos corpos. Será?

    Durante muitos anos misturamos a pátria com as chuteiras, noventa milhões em ação, a política se valia das chuteiras dos craques para uma autoafirmação do país. No entanto, a realidade não corresponde aos fatos. Aquilo que nos unia, ou nos fazia unidos se desfez no ar, quando, realmente, a política, no seu lado prático das ruas, tomou posse da camisa amarela como uma postura, visivelmente dentro de um país dividido. O comércio acusa que a camisa azul, no Brasil, já vende mais do que a amarela. A justificativa de um lojista é de que um lado não quer ser confundido como o golpista, e o outro pelo mesmo motivo. A camisa amarela voltou a unir o povo, que assim como o presidente muitos não querem. O amarelo, de fato, passou a ser o mote: se todos os gostos fossem iguais, o que seria do amarelo? De ouro passou a ser vergonha, ou em palavras suaves, o constrangimento.

    E a copa que sempre julgamos como sendo nossa, apenas, transitoriamente, ficando na posse de outros, veio ao encontro do completo desinteresse por ela, e, portanto, a copa agora é do mundo. Não se veem muitos brasileiros andando pelas ruas usando a camisa. Nem parece Copa do Mundo. Fica a impressão que a seleção foi desclassificada na fase eliminatória.

    Mudamos? Vamos mudar? Enfim o nosso interesse de ver a rede balançar não será mais tão grande como os nossos corações aflitos aguardando o Brasil ser chocalhado, esperando o resultado de novembro? Será outro sete a um?

    Já foi dito que no Brasil nem a máfia deu certo. E agora a copa entra nesse rol, o sete a um ficará em nossas lembranças, assim como o Uruguai na década de 50.

    Um povo demonstra sua capacidade de mudar quando as perspectivas mudam, quando o foco muda, quando as importâncias mudam. Finalmente, estamos descobrindo quem somos nós? Muito difícil responder. A bola já está rolando no Brasil, e ela não é redonda, está quadrada, difícil de rolar pelo gramado.

     

     
     Nilson Lattari

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