Tag: Nilson Lattari

  • A VELA E O FOGO por Nilson Lattari

    A VELA E O FOGO por Nilson Lattari

    A vela é somente vela quando tem o fogo a tremelicar com o vento. Desenha formas desordenadas nas paredes, dá vida ao breu, entretém as pessoas, e é o motivo de brincadeiras de crianças, quando juntam os dedos das mãos e fazem teatro nas paredes.

    Os pratos são servidos romanticamente por elas, quando um casal se junta e comemora, em brinde ao casamento do futuro ou de outrora, lira de muitos anos vividos, amancebados, ou então a aurora de um amor nascendo nos seres aconchegados.

    A vela é somente vela quando o corpo é velado, e se despedem do morto, em choros, abraços, saudades, desejando que a longa viagem não termine em trevas. O fogo é outra vida.

    A vela é aniversário, é comemorar de anos, passar do tempo, e elas vão se multiplicando a cada ano vivido, desejando todos que elas se repitam.

    Ela conduz o viajante pela estrada escura, é protegido o fogo com a mão em borco como se fosse uma lamparina, dessas que se veem nas carruagens. Ela conduz o morador por entre os quartos escuros, e verificado cada ponto, cada barulho estranho, como se andasse em um labirinto.

    Ela segue na procissão, repetida de mão em mão, adorando a imagem que segue no andor, carregada nos ombros dos homens. É a virgem iluminada unindo corações. A derramar suas lágrimas quentes que escorregam nas mãos trêmulas dos jovens na primeira comunhão.

    O que seria da vela, se não existisse o fogo?

    Seria apenas um pedaço de sebo, parafina, esquecida em uma gaveta, com a caixa de fósforos ao seu lado, preparadas para o chamado de emergência ou da comemoração, reunindo os homens ou dando ao solitário a companhia.

    Está na mansão ou no casebre, no castelo, nas igrejas, caminhando com o santo e o seu capuz na estrada, ou o homem impuro, preso na tocaia, ela a vela, ele o fogo, companheiros inseparáveis que se transformam em luz.

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  • O AMOR É CEGO por NILSON LATTARI

    O AMOR É CEGO por NILSON LATTARI

    Se um preto e uma branca, uma gorda e um magro, um baixo e uma alta e uma jovem e um velho passeiam de mãos dadas pelas ruas, trocando carícias, dizendo coisas ao ouvido de um e de outro, rindo de coisas simples e em voz baixa fazendo planos, poderiam dizer alguns e pensariam outros, que estão fora do jogo, que o amor é cego, coitado.

    Nessa hora, o amor responderia que pior cego é aquele que não quer ver. Porque o amor olha com olhos diferentes, o amor de olhar por dentro de cada um, e dentro de cada um dos amantes há um mundo inteiro a compartilhar, e que mantém aqueles que passam, olham e imaginam muito longe desse compartilhamento, de que os olhos do amor enxergam tudo, tudo aquilo que aqueles que não amam, ou não estão no estado de amar, não conseguem enxergar.

    O amor é cego porque ele tateia o corpo de quem se ama, como a cegueira que procura a zona de conforto. O amor é cego porque ultrapassa as barreiras do preconceito, do padrão de beleza e não vê diferença no tempo entre dois cegos a se encontrarem.

    O amor, como o cego, esbarra naquilo que não vê, como se fosse o encontro do acaso, uma química qualquer se esvai e percorre todo o corpo, não sabendo bem no que esbarrou o olhar e, de repente, tudo em volta para, e procura entender o que está a sua frente, não pensa em escapar ou evitar, mas, pelo contrário, deseja mergulhar fundo para descobrir o que fazer com aquilo que enternece o corpo e a alma, e nos faz apaixonar.

    O cego procura melhorar e aguçar os outros sentidos que lhe restam, o amor, ao contrário, desliga tudo que tem em volta e fecha os olhos procurando curtir aquela escuridão, que vem de surpresa calando as vozes da multidão.

    O cego segura a mão daquele que o guia, o amor segura a mão da cegueira e se entrega ao prazer de cada dia.

    O cego evita o obstáculo, o amor o enfrenta e acolhe, o cego procura chegar ao destino em segurança, o amor se prepara para a mudança, sabendo que nada será como antes.

    O cego chega ao destino e fecha a porta se retirando ao seu mundo particular, onde tudo lhe é familiar, o amor abre uma porta nova e se deixa naufragar e se entrega ao destino e à aventura.

    O amor é cego por muitos motivos: é um guia amante da cegueira que leva outro cego pelo braço; aproxima dois seres que sem pensar dizem segredos de si para cada um em momentos de ternura; pensa que mais vale dois pássaros voando com as mãos entrelaçadas do que um pássaro sozinho, triste e amargurado.

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  • ONDE ESTÁ A ALMA GÊMEA por Nilson Lattari

    ONDE ESTÁ A ALMA GÊMEA por Nilson Lattari

    A alma é gêmea, parecida, tem semelhanças, mas, não é igual, não é cópia, papel carbono, com as mesmas ideias, nem mesmo com a mesma força de amar. Nenhuma alma é gêmea, e nem por isso não existe, nem mesmo subsiste na nossa forma de pensar, porque não é o reflexo de um espelho do destino, nem mesmo está esperando a nossa chegada, a nossa entrada repentina em um bar, em uma virada de esquina, ou no apresentar de alguém.

    Gêmeos são duplicados, mas, diferentes, nascidos em tempos entre si, distantes, mesmo que infinitesimais. Possuem gostos diferentes, pelas cores, pelas roupas, pelos brinquedos. E nem sempre formam um par equidistante, formal, que se completa, que se deva viver sempre próximo, colado, pregado, dividindo coisas em comum.

    Não se procura uma alma gêmea, até porque sendo alma, inerte, feita de luz, imaginária, as almas não se procuram, porque são almas, puras e não viventes do viver físico.

    Almas gêmeas são figuras físicas, podendo ser um amigo, uma amiga, um companheiro momentâneo de viagem, um conhecido que nos faça rir, um encontro em uma fila, um bate-papo informal. E como almas são assim, fugazes, momentâneas, podem se dar por um dia ou por toda a vida, nada além da eternidade, e na eternidade quem sabe, as almas sejam gêmeas, de verdade.

    Quem procura almas gêmeas encontra infelicidade, e não percebem que as almas gêmeas vêm em nosso socorro sem que saibamos. No desconhecido que nos ajuda em um escorregar na calçada, no vizinho que acode nossos gritos, naquele que nos cede um lugar, ou nos oferece uma ajuda sem pensar, apenas com o prazer, este de alma, de nos ajudar.

    É muitas vezes o amigo que para, para nos ouvir, consolar, indicar caminhos, e depois de algum tempo, ele some, se esconde no seu endereço, nunca mais é solicitado, e guardamos dele o endereço, o telefone e, algumas vezes, a saudade, e nos faz pensar: o que aquele anjo que nos guardou faz agora?

    Não se procura a alma gêmea como a felicidade. Não encontramos a felicidade, ela nos encontra, nos momentos de sorte, de alegria, como devem

    ser os momentos de felicidade, surpresos, não cotidianos. Na alegria do primeiro beijo, do primeiro encontro, na troca de olhares, do aperto de mão entusiasmado e no abraço que concedemos sem vergonha, no meio da rua, apenas externando que a alma gêmea está ali, agora, e, de repente, não encontraremos mais, e encontraremos outras almas; igualzinho à felicidade.

     Nilson Lattari

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  • DAS TRIPAS, UM CORAÇÃO por NILSON LATTARI

    DAS TRIPAS, UM CORAÇÃO por NILSON LATTARI

    É com um coração que tiramos das adversidades a coragem de continuar. Se tudo aquilo que temos é o infortúnio e adversidade para enfrentar, não poderemos nunca encará-las, se não tivermos um coração para colocar na frente e avançar.

    O coração do ser humano é um terreno de solidão onde ninguém, a não ser seu dono, pode penetrar, invadir, perguntar, se sentir acolhido. O terreno da solidão é árido. E como dois viajantes que vagam pelo deserto, o coração e seu dono vão se satisfazer nas lágrimas, oásis de banhos de tristezas e alegrias, em busca das miragens que oscilam na penumbra da noite, ou no recolhimento da casa, se perguntando onde foi o erro, e, identificado, os porquês tão angustiantes que assomam a nossa consciência.

    Louco é o coração que vagueia pela noite em busca de um amor inconsequente, ou que se esconde nas sombras para poder vislumbrar a sombra do perfil amado que se exibe na janela iluminada. Louco é o seu dono que leva o companheiro da solidão pelas escaladas da aventura, na busca de um amor incerto.

    Se o coração não suporta mais a adversidade, é o guerreiro com tenacidade que tece outros corações, vindo de outras partes do corpo, e mesmo nas tripas encontra força para que ele exista.

    Sofre o corpo de um coração aventureiro que dá ao corpo as dores reais que ele apenas sente como um arranhão na pele. Indiferente continua a maltratá-lo, porque é do amor ausente que ele se alimenta, enquanto o corpo definha lentamente.

    No corpo, o coração é o único órgão que fala, batendo sempre como um código indecifrável, e que transmite apenas emoções, quando acelera, dispara, ou quando, lentamente, vai diminuindo sua ansiedade, dando ao corpo a oportunidade de pensar e agir, enquanto os outros somente a dor acusa sua presença.

    Se das tripas construímos um coração, a ele depois damos vida humana, quando quase sai pela boca, ou aos pulos parece que vai explodir quando se prepara para a notícia por longo tempo esperada.

    Coração de pedra, coração de anjo, coração de gelo, coração de criança, coração de ouro, quantos nomes damos a ele, e, no entanto, nenhum deles pode lhe nomear, o coração é inconstante, e muda de nome diante de cada momento que vive, e se se despedaça é nas tripas que vamos encontrá-lo.

    Mesmo que nomes tenha, sejam para o bem ou para o mal, todos são afetos que sentimos e damos aos outros, e se damos, a afeição é um feito revolucionário. A ela não podemos ficar indiferentes; ou mudamos, ou as circunstâncias nos farão mudar.

    Abandonamos nosso mundo de conforto, e para enfrentar o mundo novo é preciso buscar um coração onde estiver, mesmo nas tripas do ditado popular.

     

     Nilson Lattari

     

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  • CRÔNICA DA LOUCURA por Nilson Lattari

    CRÔNICA DA LOUCURA por Nilson Lattari

    Afinal que loucura é essa que anda pelas mentes, essa vontade irresistível de mudanças? Como é ser louco em um mundo cada vez mais distante do humanismo que deveria permear todas as nossas ações?

    Que faz um louco que diz coisas insanas como querer menos desigualdades, a bradar pelos ares que devemos ser mais iguais, menos egoístas, menos ambiciosos na forma de buscar novas formas de viver, mas de acumular coisas, como se fôssemos viver eternamente e nossos destinos seriam o de alugar galpões de fundos intermináveis?

    Enquanto um louco sorri sozinho, de si mesmo, de seus devaneios, esses loucos que lutam por novas formas de viver são as vítimas dos sorrisos daqueles que passam e os ouvem a bradar pelas praças, a empunhar faixas e cartazes, de que a vida tem de mudar. São loucos a pedir o término da loucura.

    Loucos são aqueles que buscam uma vida mais simples, que procuram formas mais naturais de se alimentar, de consumir, dentro dos seus limites, estabelecendo uma nova forma de entender a felicidade, que mesmo restrita a uma casa, a um quarto, a uma mente descolada, apenas são vistos como os loucos, os diferentes.

    A diferença é a loucura dos visionários, e não a indiferença que está dentro de nós – que mundo louco, meu Deus!

    No final do século XIX ficou estabelecido que loucos seriam aqueles que não obedeciam às normas sociais. E quantas coisas foram feitas aos loucos que apenas queriam mostrar no presente as mudanças possíveis no futuro? Quantas vezes as ideias loucas por um mundo mais justo foram consumidas nas fogueiras, escondidas e guardadas em livros que se empoeiraram nas bibliotecas e nos porões sujos, protegidos pela onda de normalidade que assaltou alguns de nós.

    Enquanto os loucos querem um outro mundo possível, livre das amarras e das ideias já estabelecidas e prontas para aqueles que estão vindo, há os que obedecem ao sistema pronto e desfilam suas normalidades e falsas aparências.

    Como não estabelecer um muro divisório físico, real e outro dentro de nós mesmos? Todos têm medo dos loucos e das suas loucuras. Quem sabe eles mesmos nem têm ideia aonde as suas loucuras os vão levar? Mas vão, mas se sentirem medo ou dor, vão assim mesmo.

    Cada louco com sua mania, cada louco com seu sonho. Como é a sensação dos normais olharem por cima dos muros e rir da loucura dos outros? Será que riem ou gracejam do outro ou riem de si mesmos por não serem corajosos em embarcar na loucura do futuro possível, são os risos dos nervosos e claudicantes.

    Loucos são os revolucionários, que quando veem suas ideias sucumbirem no caudaloso rio da subserviência são somente loucos e que a eles não se deve dar atenção. Ou então são os heróis do futuro, aqueles que propuseram uma nova forma de vida, não tão nova, porque queiramos ou não ela está dentro de nós, espremida pela loucura de viver um mundo para o qual não fomos forjados para viver e a nossa zona de conforto.

    Quantos loucos de verdade saíram para as ruas a defender heróis forjados na primeira hora, quantos serviram de loucos para resguardar a loucura do egoísmo de poucos? Quantos foram taxados de loucos por defender alguma coisa contrária?

    Se ficamos louco de amor, fazemos coisas além de nós: pulamos muros, convenções, preconceitos, apenas pela vontade pura de exercer nossa paixão. Loucos são assim, mas somente os amantes são adorados e os revolucionários quando são vitoriosos. Amar é uma forma de loucura. Se todos nós somos capazes de amar, por que não nos permitir outras loucuras?

    Mbuki-mvuki é uma expressão do bantu (África) que é intraduzível, e remete àquela vontade irresistível de tirar as roupas enquanto dança. Pense na palavra, no seu jeito, e se imagine. Embarque nas palavras e nas ideias loucas que o mundo dos loucos te dá. Tenha o seu momento de loucura.

     Nilson Lattari

     

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  • ENTRE A VERDADE E A FÉ por Nilson Lattari

    ENTRE A VERDADE E A FÉ por Nilson Lattari

    Fé é um sentimento onde se crê sem nunca ter ouvido, sem nunca ter falado, sem nunca ter visto: a Fé é cega. No entanto, a descoberta da Verdade é a sua procura, é o encontro com seus sentimentos, e, para uns, eles estão à flor da pele, ou escondidos sobre os escombros de interesses os mais mesquinhos. São dois momentos em que nos encontramos atualmente: a escolha entre a Fé e a Verdade.

    Colocar a Fé a serviço de alguém, de alguma instituição é, muitas vezes, a revelação de uma fraqueza, de uma entrega para outrem das atribuições que deveríamos tomar rédea, é se colocar em uma zona de conforto. Entregar-se a discursos radicais, desde que solucionem nossos problemas, levados por nossos interesses pessoais, é ter fé na solução que os outros nos apresentam, desde que seja para submeter aqueles que nós excluímos como indesejáveis, por serem pobres, pretos, sem famílias, sem estruturas, com deficiências mentais, físicas, ou simplesmente têm um coeficiente intelectual que não atendam aos interesses do mercado, ou não nos sirvam.

    A Fé é uma covardia, quando utilizada nos interesses do nosso conforto pessoal, e é por esse motivo que muitos aceitam as soluções vendidas por oportunistas, colocando os excluídos, e nesse instante, aqueles que escolhem seus estilos de viver gêneros, ocupações ou formas de viver. Entregar corações e mentes para discursos discriminatórios é, por isso, a covardia vestida de Fé.

    A Verdade, no entanto, exige coragem para dizer, para defender, para se autocriticar, corrigir rumos, exigir mudanças, é se expor, contrapor, mostrar, e dando a cara para receber críticas. Para ser verdadeiro é preciso ter coragem. Porque o discurso da imposição, do conservadorismo, e, explico, que conservadorismo é mais do que nunca deixar ficar desse jeito, e não mudar o jeito para eu ter que dividir, aceitar aquilo que me ofende, ou que me proporciona esconder o que sinto, e me transforme em uma pessoa “de bem”, é o mais fácil, porque não exige a procura, somente a espera de um salvador, mesmo que espúrio.

    O verdadeiro excluído é aquele que se exclui, que quer se mostrar como o correto, aquele que segue os ditames do bom comportamento, ou o que venha ser isto. E, para isso, tem que ter fé em alguém que faça e diga o discurso sujo onde se possa esconder as reais motivações. É claro que deva ser sempre alguém que possa ser descartado, e que o nome, o nome dos vivandeiros da fé não apareçam.

    A Verdade é o que nos liberta, que nos faz encarar nossos medos, viver com nossos diferentes, aceitar que somos diferentes em algum momento ou lugar dentro de nós mesmos.

    Procura a Verdade e ela vos libertará, mas não é a Fé que te salvará e sim os seus atos, incluindo suas atitudes, suas palavras, suas ações. O que serão atos da Verdade e os atos de Fé? O que o Mestre escolheu? A coragem ou a covardia?

     Nilson Lattari

     

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  • GULOSEIMAS E INFÂNCIA por Nilson Lattari

    GULOSEIMAS E INFÂNCIA por Nilson Lattari

    O garoto entrou na loja, praticamente puxando o pai pelo braço, e com o dedo em riste apontava para as bolas de vidro recheadas de balas, com invólucros coloridos. O pai, pacientemente, perguntava o preço ao vendedor e o menino se extasiava com a enxurrada de coloridos que encheram suas mãos.

    Balas e crianças combinam com perfeição. As balas são, talvez, aquelas que mais lembram a infância, a boca sedenta de açúcar sem importar com as advertências da mãe, quanto às cáries que tanto choro vai custar depois.

    Eu não fujo disso, tenho as minhas cáries, ainda, quem sabe, daqueles tempos em que os açúcares inundavam a minha boca também sedenta. Até hoje, ainda recorro a elas; sendo a minha preferência aquelas de iogurtes, oferecidas como brindes em restaurantes, bem baratinhas.

    Mas, a maior lembrança é do doce de abóbora, da mariola, da maria-mole, e do principal: as balas de tamarindo, envolvidas em um papel branco, como se não tivessem dono, fabricadas artesanalmente.

    Hoje, o doce de abóbora ainda se encontra, bem como da mariola, ou doce de goiabada, embaladas industrialmente. Seria por conta da higiene? Todos têm o mesmo tamanho, espessura, não lembrando aquelas que vinham em tamanhos disformes, e que os meus dedos iam apontando para as maiores, as de tamanho mais generosos.

    Havia também aquelas gelatinas coloridas, com pedaços de açúcar cristal espalhados, aquela coisa quadradinha, perfeita, ou então os doces de jujuba.

    Não sei se os nomes mariola, quebra-queixo, marias-moles, ou o doce de abóbora, que não tinha um nome específico, ainda são referidos dessa forma, ou, simplesmente, as crianças dizem: quero aquele doce, o pretinho, o cor de abóbora, a amarguinha do tamarindo. Apontam com o dedo e querem, e pronto.

    Esses doces são lembranças de um tempo antigo, satisfazer as crianças com as guloseimas faz parte de um pouco de infância que trazemos conosco.

    Os velhos balcões de madeira e vidro ao contrário do bem comportado pote de acrílico, as embalagens que envolvem os doces, protegendo-os de atores externos, visitantes noturnos das padarias.

    Os objetos de desejo, todos têm uma preferência, uma recordação da infância: damos um doce para quem quiser recordar.

     Nilson Lattari

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  • DORMIR COM ELA por Nilson Lattari

    DORMIR COM ELA por Nilson Lattari

    Não consigo passar a noite sem ela, eu juro, ao dizer isso. Quando a escuridão da noite se aproxima eu penso na próxima etapa, e ainda com os olhos arregalados eu olho através do negror da cortina que desaba no quarto, e tento enxergar, descobrir, como ela virá vestida.

    Temos uma senha, ou algo assim. Primeiro fecho os olhos e imagino um lugar qualquer, desses que ficaram perdidos no tempo passado, e resolvo dar um rumo, um novo roteiro na minha vida que seria no futuro.

    Amante qual seria? A profissão, qual eu teria? E o que resolveria estudar, tentando uma outra formação, outra informação, dessas que já temos no futuro, e a transportamos para o passado de então.

    Pronto. A cama já está feita e ela, bem ao meu lado, se deita. Começamos então a colocar pedra sobre pedra, elaborando caminhos, e… Ah! É claro! Os diálogos são perfeitos e encadeados, e o ouvido, enfim, ouve aquilo que deixou de ser dito, na hora devida, o sim e o não, sob o devido controle, colocam as coisas no devido eixo, e assim vai seguindo o mundo, em um caminho paralelo, sem desleixo.

    Algo é murmurado, e claro, refazemos todo o trajeto, começamos do jeito que se quer, para que toda a caminhada chegue ao rumo certo. Aquele elogio que deveria ter sido dito, na mesma hora ganha vida, o beijo que ficou preso se expande e ganha ares de amante, ele é quente, mais amadurecido, mais prensado, nenhuma daquelas bobagens que foram ditas, na forma e na hora errada, Deus me livre, são logo abandonadas e fica aquele dito por não dito.

    Realmente, somente com ela ao lado, a felicidade existe. O mundo? Ah! O mundo é bem diferente, para os outros é claro, que não fazem parte daquele círculo! Mas para os próximos, não, não, tudo fica diferente, harmonioso, e os momentos tristes são devidamente evitados.

    As maravilhas correm a mil. Nos abraçamos e ficamos ali juntinhos, pensando, no murmurinho das vozes, a dizer coisas doces um para o outro. Que mundo, então, passa a existir, o sono chega, e quem sabe nos sonhos eles, aqueles momentos, não continuarão!

    Antes que o dia ilumine pela janela, e ainda torcendo que se anuncie o som do rouxinol e não da cotovia, os olhos, ainda adormecidos, aos ouvidos chegando outros sons, tentam perdurar mais um pouco a pouca escuridão. Ela vai se embora, saindo de mansinho, abandonando o nosso ninho, essa louca imaginação.

    E vem depois aquele desânimo, que desencadeia por dentro de nós, uma realidade crua e iluminada, deixando na mente bem marcada, se perguntando, como uma cicatriz: Meu Deus, por que não foi assim que eu fiz?

     Nilson Lattari

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  • A HISTÓRIA DE UM ATEU por Nilson Lattari

    A HISTÓRIA DE UM ATEU por Nilson Lattari

    Era um ateu, assim considerado porque não via nenhuma espécie de conserto em alguma coisa. Coisas como fraternidade universal, bem estar da comunidade ou mesmo amor ao próximo. Dizia essas coisas aos quatro ventos. Muitas vezes saía dali e vinha pela madrugada levando cobertores para os moradores de rua, que ficavam à mercê do frio. Ele distribuía os cobertores ou mesmo fazia serviços colaborando com uma sopa, enquanto praguejava dentro de si mesmo, se afastando até mesmo quando algum grupo se juntava para rezar. Ele se afastava, e saía pelas ruas se compadecendo de algum cão que perambulava pelas ruas, ficando na eterna dúvida se deveria levar somente mais aquele para sua casa, e vê-lo se reunir a outros que o aguardavam cheios de mimos, latidos e agrados.

    Festejava, quando lhe diziam, que o seu comportamento de ofender a Deus o levaria ao Inferno, e ele respondia que ainda bem que não se misturaria com quem não concordava. E não via nenhum problema em blasfemar, até porque não blasfemava, porque até mesmo se fizesse isso aceitaria a existência de Deus. Logo não perderia tempo com isto.

    As lágrimas corriam de seus olhos, silenciosamente, quando via negros e pobres, crianças serem afugentadas por seguranças e policiais dos locais mais nobres, e quando se sentiu mal, resolveu morar perto deles, para que de alguma maneira pudesse ajudá-los. E não aceitava um agradecimento em nome Dele. Achava absurdo, porque ele o fazia porque queria, movido por alguma coisa que desconhecia.

    Retribuía dizendo que se Deus existisse não teria permitido as injustiças no mundo. E que as ações de cada um é que poderiam mudar o mundo, e fazia todas elas dando o exemplo de como seria possível.

    Se dizia infeliz consigo mesmo, quando olhava no espelho, apesar de, escondido, um sorriso chegar à sua boca, vendo que uma ação que fizera antes com alguém, com algum animal havia surtido algum efeito benéfico. Era o seu momento de alegria, se sentia o melhor dos homens, mesmo que quando olhasse para os lados não houvesse ninguém para festejá-lo. Para os outros era apenas um ateu incorrigível, mas, para ele, e somente para ele, era o melhor de si que poderia fazer. E enquanto as lamentações de outros era não ter conseguido algum bem material, para ele a lamentação era não ser possível fazer mais.

    Outras vezes conseguia algum benefício para alguém, e atribuía à sorte ou ao destino, afinal de algum jeito a vida tenderia a mudar. Era alguma coisa inexplicável, como se viesse do nada. A sua explicação era de que o mundo era como é, sem nada

    a acrescentar e nada que se pudesse fazer para alterá-lo. Simplesmente, ninguém poderia fazer a diferença.

    Ninguém acreditava nas suas boas ações, diziam que quem não acreditava em Deus, com certeza, nenhuma boa intenção poderia existir.

    E ele seguia seguindo seus próprios passos e o que o seu coração mandava, ações, para ele, era o que importava, e em Deus, simplesmente, não acreditava. Mesmo que Deus continuasse a procurá-lo, porque acreditava nele.

     

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  • NOMES, PARA QUE SERVEM?

    NOMES, PARA QUE SERVEM?

    Muitos se preocupam com os significados dos seus nomes, talvez na vã tentativa de comprovar com a escolha do Destino uma futura missão, podendo estar em uma representação do mártir cristão, ou da figura pagã que reinou em outros tempos, do adjetivo que remeteria ao seu real eu, internado na alma, que poderia lhe dar importância sem o menor esforço.

    Dar nome aos bois, falar em nome de alguém, de importância ou significado, ou a perguntar o nome disso ou daquilo; o que existe, de realidade, entre o nome que têm as coisas e os seus significados?

    Nossos pais, aqueles os responsáveis pela escolha dos nossos nomes, não são inquiridos, até porque as respostas seriam as mais prosaicas; desde a homenagem a uma figura histórica, ao simples gosto pessoal, de um parente próximo e relevante, na escolha do artista da moda, ou uma simples onda que se apossa da multidão, e o sorteado da vez vai carregar pelo resto da vida o nome dado.

    Nomes são, também, referências, pontos de partida para orientações, para um uniforme meio de comunicação para sabermos sobre o que falamos, onde estamos.

    Depois, alguns nomes se tornam nomes de ruas, lugarejos, bairros, cidades. É com nomes que lembramos da nossa História, e é com nomes, alguns pejorativos, depreciativos que descartamos as coisas que não desejamos.

    Mas não só de |Homens vivem os nomes. Vivem também daqueles que se referem a defeitos que existam nos corpos dos Homens, desde o careca, ao exageradamente gordo ou magro e, combinados, viram formas de homenagear duplas, grupos, etc., ou então são marcações que fazemos sobre os outros, taxando de conservadores, comunistas, direitistas e esquerdistas, e, mais recentemente, com os apelidos: coxinhas, mortadelas, trouxinhas até mesmo os maria-vai-com-as-outras, com o devido perdão com as Marias, quer aquelas que vão ou ignorem as outras.

    Enfim, nomes são relevantes para sabermos com quem falamos, para nos lembrarmos de quem, e a relevância é dada por aquilo que fazemos, deixamos em nossa História, que pode ser a referência dizendo que aquele

    sujeito não é um fulano e tal, que fez tanta coisa boa, ou não pode ser igualado, ao mesmo tempo, com o sujeito que nunca poderá ser taxado de um beltrano que fez outro tanto não na mesma proporção de probidade e honradez.

    Mais do que saber o significado do nome, devemos dar a ele um significado e uma história de que ele, e também nós devamos nos orgulhar, a ponto de ser lembrado como homenagem. Afinal, para que servem os nomes? Para serem preenchidos com uma bela história.

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  • MINHA RUA por Nilson Lattari

    MINHA RUA por Nilson Lattari

    Minha rua é como um rio que vai carregando memórias, eternamente. Quando chego à janela e debruço o olhar sobre as pedras, relembro que ela mudou ao longo do tempo. Foram as casas que se tornaram prédios, foram vizinhos que encheram carros com as mudanças de vida, e novos vizinhos que foram chegando, buscando as informações que os outros levaram, e quem sabe as recontar.

    Minha rua é um rio que às vezes desce caudaloso, com as notícias terríveis correndo, contando horrores de crimes, de brigas, de desencontros de amores, e contendas entre antes amigos, durante inimigos e novamente amigos antigos que se retornaram.

    Minha rua de tanto mudar ficou muda, e de tantas coisas que aconteceram nela tornaram as janelas meras fontes de informações de gente antiga, e numa confusão de coisas, a memória ficou pra trás.

    Minha rua às vezes tem notícias boas, como o conserto do buraco, da água que corria infinita, das luzes que se acenderam novas, trazendo modernidades, dos amigos, já velhos, já avós e avôs, a passearem com seus netos, contando, quem sabe, novidades que trazem de um tempo anterior, apontando com os dedos os lugares onde correram, e os lugares onde tiveram o primeiro amor.

    Minha rua é um rio onde o ribeirinho somos nós, os vizinhos de longa data, que se conhecem e se cumprimentam e relembram o tempo onde, crianças, se divertiam nela.

    Minha rua é populosa, outrora tão vazia, que as festas que ocorriam eram mais que reuniões de patotas. Minha rua era um ponto de reunião, como o ouro de aluvião que subitamente um grupo encontra.

    Minha rua é transgressora, às vezes, perigosa, como o rio que transborda e arrasta as gentes, seus móveis, suas angústias e seus amores.

    Minha rua tinha namorados e namoradas, tinha cantiga de roda, hoje é um passar de carros, motos, que as brincadeiras de bikes, antigamente, bicicletas, já não encontram espaço no meio do asfalto novo, tão gostoso de passear, ao contrário dos paralelepípedos que pareciam cantar.

    Minha rua tem memória, dessas que até as pedras escondidas no asfalto sabem. Por isso, a memória, que fica escondida no engarrafamento, parece o gigante que dorme à espera de um despertar, aguardando que alguém, finalmente, faça um buraco na rua e ela volte a acordar.

    Minha rua tem memória, enquanto vivemos aqui. Um dia, quem sabe, alguém venha a perguntar: Que faz aquela chaminé ali, como um monumento a ninguém? Alguém talvez se lembre que era a casa de um homem que gostava

    de escrever e, por último alento, colocou na lareira ardente os últimos parágrafos da rua, e levou para sempre as memórias do lugar.·.

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  • DOIS EM UM BAR por Nilson Lattari

    DOIS EM UM BAR por Nilson Lattari

     

    Era um bar na rua do Catete, eu, com a barba por fazer, mas com alguma vivência, podia imaginar Machado, o de Assis, passar em um cabriolet, pince-nez a olhar as meninas que andavam apressadas, nas suas minissaias apertadas. E pensar que daquela cadeira pesada, com os pés redondos e antigos, aquela mesa de mármore encardido, as laterais dela com um floreio, o barulho das conversas, das frituras e a geladeira antiga de madeira, espelhada, de vez em quando acionando com o tranco do compressor, muitos outros antes de mim, que já passaram por essa vida, estiveram a olhar a mesma rua, com certeza, com muitas mudanças, talvez até ele, o Machado.

    O bar era antigo, passado de pai para filho, geração por geração, atestado pela sucessão de quadros com as fotografias dos ancestrais do dono que brilhando de suor, gordo e de cigarro na boca comandava as comendas e o burburinho da freguesia.

    A rua apertada, com os carros estacionados de cada lado e uma sinfonia de buzinas na fila única do engarrafamento trazia de volta a realidade.

    Eu olhava o Décio Avelar na minha frente, quase choroso, a me confessar que a sua Dineia, aquela mesma, filha da costureira, há tempos já não lhe dava atenção, e, naquele dia, de surpresa, arrumara as malas e escafedeu-se, descendo do sobrado que os dois tinham alugado na Correa Dutra, nem bem fazia dois meses.

    A minha cara não conseguia olhar o olhar do Décio, só conseguia vislumbrar a gravata aberta, a camisa suja de toda hora ele besuntar os dedos gordurosos na sardinha que ele triturava, ainda tiritando logo que saiu da frigideira, que o garçom esparramava na tigela no meio da mesa e espalhava um cheiro enjoativo pelo ar.

    Eu pediria que Machado, travestido de Bentinho, se materializasse no meio da confusão, e demonstrasse o quanto uma Capitu tinha a sua mais valia, na hora correta de um solene pé na bunda: O consolo de se sentir sofrido, mas aprendido a mais dura lição da vida. Será que o Machado andava ali pelos bares à noite, disfarçado, tentando vislumbrar seus personagens e tivesse deparado com um Bentinho, desses que ficam afogando as mágoas pelo amor

    perdido? Tal qual o Décio Avelar que misturava os choramingos e o triturar das espinhas da sardinha frita?

    Ele viria, hoje, descendo pelas ruas de pedra pé-de-moleque, com certeza, sem ainda compreender como uma história como a dele se prolongaria pelo tempo. E eu estava ali, diante de um derrotado, espanando as moscas, e aceitando meio a contra gosto as desculpas do sujeito já pelas tantas, com um cigarro com aquela cinza comprida, ameaçando cair na mesa, de que no fundo o errado teria sido ele. E eu pensava que o errado teria sido a escolha, e precisava parar com essa mania de se considerar um perdedor em tudo, se bem que lhe faltassem algumas pancadas, pá!

    A fumaça se espalhava por tudo, as conversas confusas, risadas, batidas na mesa, e o portuga da noite se esfalfando e dando ordens para um grupo de garçons sonolentos, de olhares cansados a levar e trazer garrafas de cervejas, um punhado de copos entrelaçados nos dedos, fazendo curvas entre as mesas, escapando, milagrosamente, das bandejas que lhes vinham ao encontro, trazidas pelos outros garçons.

    Voltei à vida e espantei a mosca que teimava em participar da nossa conversa levando os assuntos de mesa em mesa, como a colher informações jornalísticas para compor a pauta do jornal.

    Que coisa louca eu ali, dando atenção a um corno, evocando um Machado presumível que já ia distante no corso engarrafado do Catete. Machado já ia longe, que deveria espanar a poeira e dar a volta por cima, porque, afinal, haveria outras Dineias pululando por aí.

    Tinha vontade de ir-me embora, mas o Décio me prendia em sua choraminguice de teatro.

    Ficar imaginando ele, no banco, atrás do guichê atendendo os clientes e oferecendo o produto da vez, campanha do gerente na busca da promoção pela assiduidade em açoitar, a título de incentivo, os funcionários e, ao mesmo tempo, choramingando suas desditas, até poderia comover algum cliente que quisesse se ver livre de uma confissão fora de hora.

    Não ouso encarar o Décio de gravata e ficar posicionado diante dos seus olhos súplices à procura de uma resposta, como se eu tivesse solução para os seus problemas. Lembrei-me da Maria, a do Rosário, que me fez das suas, mas quando percebi, arrumei a Suzana, vizinha do lado, e a deixei meio

    sem jeito e a tal Maria, a do Rosário, que se imaginava esperta, ficou de boca aberta, e eu faceiro fui curtir minha desdita no meio de outro colo e outros seios abundantes.

    Mas, nada disso poderia dizer a ele que nem o Machado já indo bem longe decerto lhe daria as suas batatas, a título de prêmio de consolação.

    Até que o Décio desabou na mesa, derramando a cerveja, que o garçom solícito e mecânico veio limpar com sua toalha mais imunda, para limpar uma mesa mais imunda ainda.

    O desfiar da história do Décio dava um livro. Não existe banalidade maior do que um bar cheirando à cerveja derramada, com as mesmas moscas cumpridoras de horários a zumbir entre as mesas como as garotas em busca de programas, e um bêbado desfalecido e que eu teria, por força da nossa amizade, levá-lo para casa.

    Dali, consigo vislumbrar meu quarto no terceiro andar do número trinta e dois da Silveira Martins, e as pessoas a se acotovelarem na busca do ônibus, ou entrarem no bar e vendo a cara tristonha e a gravata aberta, engolindo mais um copo de cerveja, e o meu olhar perdido no tempo. Uma mistura de gente que vai para casa, cansada, e o grupo que tenta esticar a sexta-feira além do seu tempo, rindo, levando cervejas por cima das cabeças, as mulheres rebolando, sambando um samba imaginário.

    Eu ali.

    Me arrependo de ter atendido à ligação dele para conversar. A vida é dura, mulher a gente pega na esquina.

    – Topa um programa na casa da Guilhermina? As meninas são boa gente, dão consolo que nem mãe, colo quente, as ancas largas, bumbuns juvenis.

    – Quero não, quero a Dineia de volta.

    – Ora, meu caro, eu aqui me enchendo de literatura para te consolar.

    Pago a conta e vou embora, largando a mão do Décio no ar.

    – Que culpa eu tenho de não saber te consolar!

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