Sou fã de Legião Urbana. Renato Russo era um poeta em roupagem de cantor. Pode soar certo saudosismo de minha parte, mas é fato que não se faz mais música como antigamente. Entretanto, isso é tema para outro dia. Ainda assim, o que me traz hoje aqui é uma música de Renato Russo; uma das últimas levadas ao público num álbum póstumo de nome Presente, lançado em 2003. Nesse álbum, encontra-se um dueto de Renato Russo e Erasmo Carlos, “A Carta”. Ouvindo “A Carta”, comecei a divagar sobre esse ser totalmente estranho à geração Z, chamada, às vezes, sofisticadamente de “Millennials”. E a alcunha é mesmo sofisticada, pois tudo neles o é. Dizem que já nasceram com um Iphone no berço o que eu não duvido de que de fato o tenham. Não estou aqui, no entanto, para tecer diatribes à tecnologia moderna, uma vez que ela possivelmente nos traz muito mais conforto e bem-estar do que motivos para lamentos. Todavia, quem é ao menos um “oitentista” (nascidos na década de 80), como eu, sabe de tudo que o avanço tecnológico, “nunca antes visto na história deste mundo”, levou de roldão. Uma longa introdução que me leva de volta à Carta, à canção “A Carta” e às divagações e lembranças que ela me ensejou:
O ano era 2001 e eu estava no final da minha adolescência. Uma das minhas paixões à época era animês – desenhos animados japoneses. Meus amigos e eu nos reuníamos todas as tardes e contávamos as horas e os minutos para um novo episódio de Dragon Ball Z na Band. Comecei então, em meio à febre causada pela saga de Akira Toriyama, a colecionar as revistas em quadrinhos do desenho (os famosos mangás japoneses nos quais se lê de trás para frente!) e nelas havia uma seção de cartas à qual leitores escreviam falando de sua paixão por Dragon Ball Z e deixando seu contato para correspondência entre si . Foi aí que encontrei o contato de Hiroko. Hiroko era uma jovem paulista da cidade de Suzano e tão fã de animês e mangás quanto eu. De súbito, tomei de uma caneta e uma folha de papel, lhe escrevi uma carta e lhe enviei junto, como um mimo, um desenho que rabisquei do meu personagem favorito de Dragon Ball Z. Perguntei ao atendente dos Correios quanto tempo levaria para que a carta chegasse ao seu destino e ele me disse que seriam cerca de sete dias. Logo calculei que uma possível resposta de Hiroko levaria por volta de duas semanas. Entre a empolgação por um e outro episódio novo de Dragon Ball na TV, acabei não percebendo os dias se passarem e fui tomado de surpresa quando me chamaram ao portão e me entregaram uma carta. Hiroko havia respondido. Não pude conter a alegria e a satisfação por estabelecer contato com uma legítima fã nipônica do meu desenho predileto. O envelope por si só já era um prêmio à parte. Hiroko havia cuidadosamente traçado os rostos dos personagens mais famosos da animação japonesa por ele todo e, inclusive, escrito alguma coisa em japonês que até hoje não consegui decifrar. Quando abri o envelope da carta e fisguei seu conteúdo, fui levado do êxtase ao embaraço total. A garota paulista me havia enviado um desenho perfeito do meu personagem favorito, aquele mesmo, do qual eu lhe havia mandado alguns rabiscos na minha carta. Se comparado ao que eu, agora, segurava constrangido e admirava em estado de total perplexidade, o meu não passava de um apanhado de linhas disformes feitas por uma criancinha de colo que mal sabe segurar um lápis. Mas Hiroko não havia feito isso por mera ostentação. Ela era uma exímia artista. Já havia muitos anos que desenhava e escrevia quadrinhos japoneses por hobby. Imediatamente após ler sua carta por duas ou três vezes lhe redigi uma resposta e nos correspondemos, a partir daí, por quase três anos.
Cada espera entre uma carta e outra era repleta de ansiedade. Checar a caixa do correio quase todos os dias, redigir uma nova carta e abrir aquele envelope vindo de longe na expectativa do que ele continha e do que aquelas linhas traziam era uma aventura saborosa e romântica (no sentido literário do termo) não só para mim, mas também para muitas pessoas que utilizavam deste meio de comunicação, mas que hoje se perdeu na imensidão do tempo.
Quanto a mim, nunca encontrei Hiroko. Não era fácil viajar até São Paulo sendo ainda um simples estudante de Ensino Médio sem trabalho. Falamo-nos uma única vez por telefone – fixo! – diga-se de passagem; celulares mal existiam quase duas décadas atrás e Instagram muito menos, então, dela, só tenho uma foto que me enviou em uma de suas cartas e eu, como nunca fui muito fotogênico, apenas lhe enviei um três por quatro meu, de uma feita, para retribuir sua gentileza.
A última carta de Hiroko chegou em novembro de 2003. Nela, ela dizia, numa mistura de pesar e esperança, que voltaria ao Japão para trabalhar e que me enviaria seu novo contato assim que possível. Hiroko era uma sansei – neta de japoneses – e já havia morado no Japão por cinco anos. Isso explicava o fato de, às vezes, me escrever coisas em japonês que eu tinha de perguntar o que significavam e esperar ao menos duas semanas para descobrir do que se tratavam. Nunca mais voltamos a nos comunicar. Nem mesmo o Google me reencontrou a amiga japonesa, desenhista de mangá e fã incontestável de Dragon Ball quando, tempos atrás, procurei por ela. Hiroko, assim como as cartas, se perdeu no tempo…
É uma pena muito grande que a atual geração, tão moderna e de comunicação tão instantânea, mal saiba o que se sentia ao se comunicar com alguém que nos fosse querido/a por este meio chamado carta. Talvez houvesse alguma espécie de virtude na demora e na espera, o que a velocidade da comunicação dos tempos atuais impossibilita porque, sem dúvida, as relações do passado, mesmo aquelas à distância, eram muito mais sólidas e verdadeiras; por vezes, inesquecíveis, mesmo quando repentinamente tolhidas pelas circunstâncias e pela implacável ação do tempo…
ありがとうございます。Arigatô gozaimasu, Hiroko!
Professor Chico
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