Que a violência contra a mulher é concreta é indiscutível. O feminismo, dentre outras coisas, procura identificar e entender os mecanismos que compõem as narrativas e articulam os discursos de opressão e subalternidade de gênero. Com um pouco de boa vontade, conseguimos tornar visível a ameaça constante e histórica da violência que mantém a desigualdade entre os sexos há séculos em nossa sociedade.
Ainda precisamos evidenciar o que é obvio e aceitar que somos um país violento, onde uma diversidade de discursos nos ajuda a construir essa imagem, essa autoimagem que nós temos, perpetuada pela literatura, pela arte e, mais recentemente, pela indústria cultural.
É só refletir sobre comerciais de TV, anúncios de revistas, propagandas diversas. Quantos deles possuem a presença feminina e em quantos deles nós aparecemos como um produto, um corpo prestes a agradar? Isso mostra o quanto a violência simbólica e física contra a mulher na nossa sociedade é invisibilizada por um pacto de silêncio e como ele acaba por encobrir a misoginia e o machismo, protegendo inclusive agressores que permanecem impunes.
O fato é que hoje os mitos que fundaram essa identidade sorridente, dançante e sensual afundaram-se em estatísticas aterrorizantes de estupros, feminicídios e tantas outras violências de gênero que nos golpeiam a cada dia, a cada vez que lemos jornais, vemos os noticiários ou acessamos as redes sociais.
Quando analisamos a nossa história, desde o começo, conseguimos observar que fomos construídos sob a égide da violência, e uma violência de gênero, nesse caso específico, que pesou sobre nós mulheres, desde as primeiras índias violentadas pelos colonizadores, às negras trazidas da áfrica ou às sinhás e suas filhas, que viviam sob o jugo de seus maridos e pais, senhores de engenho e fazendeiros, os homens bons.
É importante perceber que a mestiçagem americana desenvolveu-se associada a um forte componente sexual, fertilizado pela condição de uma ocupação eminentemente masculina, e à presença de corpos femininos nus das índias e das negras africanas, que raramente se ligavam a preceitos religiosos cristãos. Em pouco tempo, essas figuras foram associadas ao genuinamente nacional no século XIX e XX.
A ideologia patriarcal que estruturava as relações sociais no Brasil Colônia dava aos homens poder irrestrito sobre as mulheres, algo que justificava atos de violência cometidos por pais e maridos. Isso disseminou entre os homens, de uma forma geral, um sentimento de posse sobre o corpo feminino, atrelado à ideia de honra masculina. Cabia aos homens disciplinar e controlar os corpos femininos para garantir a ordem.
O Código Filipino, a legislação do período colonial que permaneceu até o século XIX, por exemplo, permitia que o marido assassinasse a esposa em caso de adultério. Era facultativo a pais e maridos o enclausuramento forçado das esposas e filhas, ou recolhimentos em ordens religiosas e sanatórios.
Já o Código Criminal do Império definia como crime sexual o agravo cometido a “mulheres honestas”, um termo que constou no Código Penal de 1940, em vigor até 2003. Nascia assim, no Brasil, o lar como um lugar privilegiado para a prática da violência contra a mulher. Dados do IPEA em 2014 apontam que 24,1% dos agressores das crianças são os próprios pais ou padrastos, e 32,2% são amigos ou conhecidos da vítima.
No século XIX, o Brasil passou por um processo civilizatório e higienizador, onde as mulheres pobres foram duramente atingidas, tanto pela violência do Estado, quanto pela violência já normalizada por seus companheiros. Muitas delas, descendentes de escravos alforriados que migraram para as cidades em crescimento, trabalhavam em casa (como cozinheiras, lavadeiras) e sustentavam as famílias.
Eram mulheres que tinham relevância econômica dentro daquele contexto e foram as mais afetadas pela urbanização das grandes cidades. Como boa parte delas sustentava suas famílias, com a derrubada dos cortiços, elas foram as mais atingidas, pois tinham seus afazeres atrelados à própria moradia. Muitas foram para as ruas, acentuando a repressão policial, além da violência conjugal.
Em paralelo a isso, no século XIX, a medicina social assegurava como características biológicas femininas a fragilidade, o recato, o predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais, a subordinação da sexualidade à vocação maternal. Em oposição, o homem conjugava à sua força física uma natureza autoritária, empreendedora, racional e uma sexualidade sem freios. (Nada muito diferente do que muitos pensam ainda hoje).
Lombroso, médico italiano do século XIX, argumentava que as leis do adultério só deveriam atingir a mulher não predisposta pela natureza para esse tipo de comportamento. Aquelas dotadas de erotismo intenso e forte inteligência seriam despidas do sentimento de maternidade, característica inata da mulher normal. As que não tinham essa característica eram consideradas extremante perigosas. Constituíram-se, assim, criminosas natas, as prostitutas e as loucas que deveriam ser afastadas do convívio social.
A violência seria marcante então nesse processo de contenção e disciplinamento dos desejos. Torna-se bem evidente aqui que a violência surge da incapacidade de exercer poder irrestrito sobre a mulher. Ela é antes uma demonstração de fraqueza e impotência masculina do que de força e poder.
Por isso, as violações em massa e o assassinato de mulheres, garotas e meninas foi uma característica comum das guerras genocidas, ou de qualquer ação destinada a subjugar e explorar uma população. O controle das mulheres e seus descendentes foi a base de todo regime repressivo em nossa sociedade.
Apenas no século XX, com a entrada das mulheres no mercado de trabalho e o questionamento do lugar de subalternidade, algumas mudanças começam a ocorrer.
A Segunda Guerra Mundial e o desenvolvimento econômico possibilitaram que se aproveitasse uma “mão de obra parada”. Com a inserção das mulheres no mercado de trabalho pós-guerra, há uma virada nas regras e valores sociais (era necessário e urgente contar com a força de trabalho feminina), que conduzem à explosão do movimento feminista na Europa e EUA nos anos 1960 e no Brasil da década posterior.
Muitos estudos começam a surgir hoje sobre a condição feminina no processo de urbanização brasileira entre os séculos XIX e XX, mas existem tão poucos documentos organizados que hoje a nossa maior fonte de pesquisa é a documentação policial e judiciária. Ela nos fornece material privilegiado para fazer vir à tona a contribuição feminina nesse processo histórico. Outro meio interessante de acompanhar as mudanças e permanências da condição feminina é pelo que era veiculado na imprensa.
Um dos primeiros casos que encontramos, está em “O Correio de São Paulo” de 11 de setembro de 1905 e ficou conhecido como “A Rainha do Baile”. Joana Maria Ramos foi esfaqueada na saída de uma gafieira. A vítima foi descrita como “uma dengosa mulata, abundante de formas e de seduções, metida vaidosamente em seu vestido vermelho, com um farto decote e um ramalhete de cravos no bandó engruvinhado.”
Existem vários outros casos midiáticos no país: Lindomar Castilho, “O assassino romântico” de Eliana de Gramond; Sandra Gomide, em 2000, assassinada por Pimenta Neves; Eloá, menina de 15 anos, assassinada pelo namorado; Eliza Samudio, morta por Bruno, goleiro do Flamengo; o caso de Mirella Sena, em 2017, no Recife.
A violência é estrutural e precisa ser combatida não só por leis e em momentos de intensos debates, mas principalmente indo na raiz do problema, focando no desenvolvimento de cidadãos conscientes em relação à igualdade de gênero e nos processos de socialização.
A educação pode formar sujeitos que constroem relações mais igualitárias. É imprescindível, por exemplo, discutir gênero e sexualidade nas escolas. Uma educação não sexista que educa seres humanos, e não ‘princesas’ e ‘heróis’, é fundamental para enfrentar o problema da violência de gênero. No fim, fica uma pergunta simples. Por que a civilização se construiu com a ideia de que somos seres de segunda classe?
Para essa resposta, é fundamental entender o papel que as masculinidades e feminilidades (comportamentos tidos como “naturais” entre os gêneros) cumprem na reprodução da violência. Porque, embora as normas sociais sejam internalizadas em nós desde que nascemos, elas mudam historicamente e podem e devem ser questionadas se trazem resultados negativos.
É urgente combater os retrocessos. Nossa sociedade é composta por discursos, movimentos sorrateiros, ameaças simbólicas imperceptíveis, que constroem esse edifício degrau por degrau, e é preciso estar atento, forte e combativo. Só existe uma possibilidade de mudança: nos perguntar sempre sobre quem se beneficia da cultura da violência contra nós mulheres.
Fonte: Vermelho
*Naymme Moraes é historiadora e doutoranda em Sociologia pela UFPE.