Trabalhei de office-boy em um escritório de corretagem de café na minha adolescência. Meu pai tentou (em vão) me apresentar ao universo do comércio dos grãos de “ouro-verde”. Mas, não tinha jeito para aquilo e meus melhores momentos na firma, quando não tinha serviço externo a fazer, era sentar-me na recepção, onde lia o caderno de cultura do Estadão, ou as colunas de música, cinema e arte dos periódicos. Minha pequena renda tinha destino e lugar certos: A “Discoteca do Randal” ou a “Papelaria Marcelo’s”. Me perdia em horas garimpando aqueles objetos negros lustrosos, com sulcos evidentes, suas capas e contracapas. Me deleitava com as cores, os designs, os artistas, músicos e todo um universo de informações contidas naqueles objetos mágicos.

Saudosismo em doses homeopáticas. Como era mais simples a vida, mais descomplicado o mundo e o valor das coisas reais, das pessoas reais. O mundo era feito de coisas que se tocam, amigos reais, distâncias reais. E o simples ato de ir a uma loja e pegar com as mãos o invólucro dos meus anseios de descobrimento, parecia tornar a música algo de concreto, que se pega com as mãos. Chegar em casa, rasgar o plástico de proteção que envolvia, sentir o cheirinho de novo, percorrer com os olhos toda a superfície impressa de imagens, cores e informações sobre o artista que procurava. Queria saber tudo: quem cantava, quem tocava, quem regia, quem arranjava, quem compunha, quem gravava, quem mixava, enfim, todos os “quens” possíveis.

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Quase uma cerimônia, pegar o “bolachão” pelas bordas para não riscar a parte plana dos sulcos, encaixar o buraquinho central no pino da vitrola, destravar e levantar delicadamente o bracinho de plástico, deslocar lentamente a agulha até o início da superfície na borda lateral e coloca-la para girar sobre a plataforma arredondada da vitrola. E os chiados, tão característicos, davam elegância e estilo peculiares ao som do bom e velho disco de vinil. Ainda guardo comigo a primeira coleção de discos de música clássica que ganhei de minha avó, comprada de um vendedor ambulante de enciclopédias e livros. Eram discos com encadernações ricas e cheias de conteúdo e informações sobre o compositor, sua vida e obra. De quebra ainda continha ilustrações na capa e no interior, de quadros de grandes mestres pintores que enriqueciam e instigavam ainda mais minha curiosidade. E com isso, ia se descortinando um mundo de novidades, de descobertas, de influências, de riquezas e autores, músicos que até então não conhecia e de possibilidades para a confecção do meu autorretrato musical.

Então veio a era dos cd’s (discos compactos) e confesso que de início senti certo desprezo por aquelas pequeninas caixinhas plásticas, com aqueles disquinhos prateados e frágeis. Como assim?  Aposentar minha vitrola? Compactar toda aquela informação enriquecedora dentro de um formato minúsculo e insignificante como aquele? “A pureza do som é incomparável” diziam os primeiros anúncios e ouvintes, “sem chiados ou distorções”. Demorei até me acostumar com aquilo e, por mais que tentasse , a impressão sempre era a de estar adquirindo algo incompleto, descartável mesmo. Com o tempo montei meu pequeno acervo de preciosidades. Vinis e cd’s dos mais diversos e significativos gêneros musicais. Meu tesouro pessoal inclui música erudita (ou clássica), jazz, música brasileira (vulgo “MPB” a qual ainda quero discorrer com mais calma e em momento oportuno), rock clássico, progressivo, música instrumental, vocal, enfim, aquilo que considerava e ainda considero música até hoje. Eles tomam boa parte dos espaços físicos nos armários e quartos. Riquezas para a alma e para o deleite de pequenos, mas significativos e indescritíveis momentos, na solidão de ouvinte, na curiosidade e na aventura dos sentidos.

E eis que mais uma vez a roda tecnológica girou alucinadamente seu carrossel febril, dessa vez com a era da Internet, das infinitas e virtuais possibilidades da vida digitalizada. E com ela chegaram os novos e minúsculos aparelhos de armazenamento musical: Ipods, Iphone, Mp3, Mp4, e outros vários que vemos surgir dia-a-dia nos anúncios e propagandas. Um mundo de informações e arquivos que vagam por um universo caótico e imprevisível. Soltas e desprendidas de significado, origens e tempo, vão moldando as predileções e mentes das novas gerações, como um canhão apontado para o futuro apocalíptico das relações humanas e das hiper-conexões da vida artificial, das redes sociais. Tem-se tudo e nada ao mesmo tempo. E toda a criação artística musical e a propriedade intelectual de seus autores, se mistura no x-tudo do tempo e da informação vazia. E todo o meu tesouro, bons quilos de cultura entre vinis, cd’s e livros agora cabem em um minúsculo pedacinho de plástico e metal. Ainda bem que sei e me lembro de muito do que contêm ali dentro, mas temo e me entristeço por aqueles que irão conhecer apenas fragmentos dessa história, fantasmas nos arquivos da informação pairando nas “nuvens” cibernéticas. O conhecimento que se adquiria em anos de estudo, pesquisas, audições, agora se encontra na palma da mão, e da memória instantânea com os seus tentáculos de alienação gratuita.

Até a próxima!

Clayton Prosperi de Paula

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