Era uma tarde que escorria lenta no horizonte e o sol jorrava seus últimos raios do dia que findava. Resolvi pegar o carro e dar uma volta, assistir talvez com sorte um belo pôr de sol no horizonte rubro que fechava as cortinas do dia. Espetáculo esse, somente alcançado nas partes mais altas da cidade, em mirantes conhecidos popularmente como “Morro da Cocada”, “Paraíso” e redondezas. Entrei no carro, liguei meu som e fechei o vidro, para ouvir com mais nitidez e brilho o cd que continha no interior do aparelho.

No “menu” da ocasião, a Grande Missa em Dó Menor K 427, do genial Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). Iniciei meu trajeto com a majestosa introdução de coral e orquestra, com seus jorros milagrosos de pura transmutação sonora.  Saí do asfalto e tomei o pequeno trecho de terra, uma subida que me levaria até os pontos de melhor visibilidade, com aquele céu já iniciando seu espetáculo diário de cores, tons e nuances de deslumbramento.

A certa altura a bexiga apertou e tive que parar o carro na beira da estrada, pra dar aquela aliviada. Ao sair com o som ligado, abri a porta e deixei a música rolando e aproveitei para mirar o pasto verde que se estendia como tapete, com cercas de arame farpado logo à frente. Pastando por ali um monte de vacas, não sei bem o tipo de raça, notei os tons de cinza claro da pelagem. Algumas deitadas adquiriam aspecto de pedras espalhadas pelo campo. Outras por ali pastando e ruminando   seu cotidiano bovino.

Quase que imediatamente, percebi que algumas se aproximavam da cerca, próximas ao carro, com certa “curiosidade” ou diria até certo “interesse”. Pensei, “por mim é que não deve ser”. Lembrei-me de um vídeo do Youtube em que um grupo de músicos toca jazz tradicional para um bando de vacas curiosas.

Então resolvi fazer uma pequena experiência de momento. Aumentei o volume do som, abri a outra porta e deixei a missa eclodir sua doce e penetrante área de soprano sobre um tapete sereno e terno das cordas.

O som foi tomando e “tornando” de maneira quase imperceptível toda aquela extensão de verde, e das árvores mais adiante, e das montanhas com seus contornos azuis se estendendo pelo “mar” sem fim, e do céu com seus mistérios profundos, e do meu ser, e das vacas e de tudo. E de repente tudo aquilo, era uma coisa só. Unidos e transmutados pela magia da música e daquele momento, em algo que não se explica, não se defini, não se entende, só se sente.

 Quando num lampejo me veio de volta razão, espantei-me com a quantidade de vacas que se acumularam ali bem perto. E o mais incrível de tudo, elas pareciam formar em suas posições uma organizada e educada platéia de ouvintes, em formação cônica, com aqueles orelhões empinados e atentos, sedentos pelo som, que continuava agora com o retorno do coral, ecoando-se majestosamente pela paisagem.

Senti uma inveja de Mozart, e queria naquele momento um piano, um palco e um microfone onde pudesse cantar e me “expressar” para aquela curiosa e atenta “platéia” de ruminantes. Elas ouviam com especial atenção e interesse, e correspondiam em tudo o que sempre imaginei e sonhei, como uma platéia perfeita, educada e culta.

Em determinado momento, como de volta de um sonho, a música terminou e elas foram aos poucos retornando a sua mansa rotina de pastagem. E olha que estou falando de um estilo musical mais extenso, de no mínimo uns 5 minutos cada trecho! Já vi pessoas “cultas” se dispersarem da música com 2 minutos de audição desatenta.

Então o sol se escondeu por detrás das montanhas e com ele, aquele espetáculo curioso e nunca imaginado por mim. Muitas vezes toquei e me expressei para platéias humanas e bem menos interessantes.

Fica a curiosidade que teima em nos alfinetar:

Serão então verdades todas aquelas matérias sobre o poder que a música exerce não só em pessoas, mas também tomates, produção de leite, no tratamento de doenças e até na cura de algumas? Serão os animais, de alguma forma, ou meio, sensíveis (ou mais sensíveis até que nós) à arte humana da combinação e produção dos sons da natureza?

Naquela tarde tive a clara confirmação disso e a moral da história? Penso seriamente em parar de comer bife.

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